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Os olhos que acreditam poder ver tudo nitidamente, mas o que se vê, entretanto, é a cegueira na sua forma mais realista, implacável e objetiva. É a brancura que cega, a falta de percepção dos contrastes, a visão que já foi tomada e,por não o saber, não sente a angústia pungente de ver o incolor com o seu brilho massivo. De modo contrário, a alma ignorante e perdida, de maneira súbita, permite que a mancha da cegueira faça-se visão completa e única.
Por essa razão, mais do que nunca, vive-se num mundo repleto de cegos que se julgam dotados de visão iluminada, cegos que temem uma suposta escuridão' que, outrora, num mundo de cosmovisão, límpido, seria a verdadeira luminosidade. Tal ideia passa a ser devaneio universal absoluto.
Olhos limitados a ver a luz morgada da lâmpada amarelada e velha. Mas não se dão conta, para eles, essa é a luz-verdade suprema. Enxergar, aperceber-se e notar o difuso – o que é noite e o que é alvo – soa como uma mensagem ingénua e desprezível para os cegos covardes.
Impelida pela esperança absurda de restaurar a visão, lavar os olhos com a imensidão do real, do que é, sento-me nessa terra pueril e, aparentemente, inútil, lançando gritos silenciosos aos ventos, audíveis para quem quer ouvir. Implorando amarguradamente pela mundivisão tomar conta de todos os olhos na sua forma original. Refazer o equilíbrio com o que é realista, resoluto e inequívoco.
Esses olhos cansados e escuros transportando um caimento lúgubre estão cansados de carregar o peso da sensatez, de abdicar, calando-se em tempos onde a sua fala é urgente, mas não é a chave para a massa cega, desobediente e inflexível. Sustentar a lucidez é sustentar o que é intangível e, por si só, insustentável.
A sustentação nunca deveria ser o alvo, senão a contemplação, objetiva
e verdadeiramente clara. A legião consome a fulgura definitivamente cega.
E eu vivo, no meio disso, afixando as 'ilusões' reais pelos intrusos que bebem do cálice lúcido.
- Autor: Hyun (em coreano significa: iluminado) (Pseudónimo ( Offline)
- Publicado: 1 de setembro de 2023 08:09
- Comentário do autor sobre o poema: Conclui a leitura do livro 'Ensaio Sobre a Cegueira' do grande Saramago e, de forma bem natural e inesperada, esse texto com um caráter mais reflexivo e sociológico surgiu. Eu tenho pensado muito sobre a forma 'cega', na qual a sociedade do nosso mundo vive, sem indagar nada, aceitando a cegueira como essa fluvial 'luz clara'. E isso me preocupa de muitas maneiras, mas ao mesmo tempo, é um sentimento que não é novo e percebo que hoje lido melhor com tal questão e mais ainda sobre a forma como isso me afeta. Assim como o poeta Kim Namjoom já disse uma vez: A sociedade é de quem tem a voz mais alta / E aqui estou eu, ainda falando em silêncio / É algo aparte, um barco em plena floração / Para encarar todo o preconceito e mal entendidos / Eu não me importo muito em ser jogado no ar / Ancorado pelos meus próprios pés no chão entre as flores sem nome / Eu não posso ir para as estrelas de novo, não posso / No caminho, eu apenas vou. Faço das suas palavras as minhas. E foi sobre esse enigma interno que o externo do mundo afetava fortemente que eu me debrucei e escrevi. "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." – Saramago, José
- Categoria: sociopolitico
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Comentários3
SERGIO NEVES - ...minha querida, Letícia...,...foste fundo nesse teu todo discorrer sobre o assunto...,...praticamente um "Ensaio Sobre a Cegueira II"... // ...caindo no lugar comum: ..."o pior cego é aquele que não quer ver"...,...um dito bem pertinente esse...,...se bem que, nesse contexto todo por ti perspicaz e sabiamente colocado, dá pra também dizer: -...pior é o não cego que não entende o que vê... -e esse me parece ser (ainda) o "estágio" atual da humanidade... // ...gostei pra caramba da leitura...,...pragmática, espiritual e culturalmente reflexiva...,...e o "comentário do autor sobre o poema" complementa com "riqueza" o todo desse teu pra lá de bem elaborado escrito... // (...Letícia Alves também é cultura!) /// Meu carinho, brasileira nordestina menina (...pois, pois...).
Exatamente, querido Sergio. O pior doença da humanidade é essa: pessoas que se recusam a ver.
Tenho tentado colocar mais o "contexto" dos meus escritos quando posto, mas nem sempre consigo. Mas é bom saber que não é apenas "um texto a mais". Fico grata com essa tua generosidade partilhada.
Abraços iluminados e um bom dia!!
P.S.: Adorei o termo "brasileira nordestina" haha
Bom dia, Leticia.
Entusiasmando por sua cultura e inteligência.
Mas, penso e assim espero, que estamos no limiar de um novo mundo onde não haverá esta cegueira.
Um abraço
Boa tarde, Nelson.
Muito obrigada! Sempre bom saber que algum escrito meu "contagiou" alguém com momentos reflexivos.
Concordo plenamente que os tempos estão a mudar, contudo, perdoe a hipérbole, mas penso que, infelizmente, os tempos estão a piorar e o homem a se degradar a cada dia mais. Sobretudo na área da moralidade. O homem em declínio sempre existiu, no entanto, a cultura, a entendimento, a sabedoria, a empatia e as "virtudes dos sofistas" eram princípios constantemente semeados na era não-líquida, não-moderna. O que se vê hoje em dia, e digo isso com pesar, são pessoas que, por não estimarem tais coisas, expressam o egoísmo e outros sentimentos maus nessa "nova era da tecnologia e informação" - a ciência tem progredido a custo do homem que se perde nesse caminho.
Todavia, é sempre bom ver a realidade e não deixá-la nos sufocar, ter esperança e brilho no olhar para apreciar a vida. Sendo assim, penso que a dose de equilíbrio é fundamental. Senti esse olhar mais otimista em relação ao futuro no seu comentário e, no fim, fico feliz em ver que ainda há pessoas que pensam assim! Nessa era "complicada" o que salva são as pessoas que não carregam a visão tépida que a massa alimenta.
Abraços de luzes!
Ficou demais este poema! Inteligente e denso! Contém pensamentos coerentes e verdades na medida certa! Saramago foi inspirador!
Abraços!
Saramago sempre muito inspirador, querido Shmuel! haha
Fico feliz com a sua observação e comentário generoso.
Grande abraço!
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