MEU QUERIDO DIÁRIO

joaquim cesario de mello

 

07 de janeiro

Encontrei-me comigo no espelho

Estava um dia mais velho

Não me lembro que dia foi esse

em que ultrapassei o rosto

que havia deixado no retrato

que tirei no final do ano passado

 

22 de fevereiro

Amanhã começa o carnaval

e eu vou para o lado contrário

levando na bagagem

duas máscaras

e meia dúzia de fantasias de palhaço

 

02 de março

Um poema começou a cair

sobre o chão do dia

como uma fina chuva de verão

Apanhei um punhado de versos

e com eles um repentino resfriado

 

15 de abril

Que penso eu

neste instante

em que não penso nada?

Mas como posso estar

pensando alguma coisa

se agora estou pensando

que estou pensando em nada?

 

29 de maio

Cheguei atrasado no ontem que já tinha ido embora

Agora tenho um dia a menos na história

como se um parágrafo fosse arrancado da minha biografia

Será que foi o dia em que morri

ou será que nele fui então feliz?

Será que era ali que estava a princesa encantada

das fábulas e dos contos infantis?

 

14 de junho

Irei para depois do amanhã

do amanhã que tenho hoje

realizar os desejos de ontem

que vieram dos sonhos que tive no passado

E quando este presente me for pretérito 

vou voltar para o futuro que não devia ter deixado

e me lembrar para não chegar de novo atrasado

 

03 de julho

Hoje fiz um poema que vai me levar

para o outro lado da muralha da China

e ir aonde os ventos não chegam

escalar as montanhas nevadas

percorrendo a pé todo o Tibete

até chegar à Terra do Nunca

e de lá nunca mais voltar

Com este poema vou atravessar

o espelho que Alice não atravessou

seguir os tijolos amarelos da estrada

navegar por sobre Atlântidas naufragadas

me banhar nas águas claras da Macedônia

e viver as aventuras de Simbad

que nas noites estreladas minha avó contava

 

25 de agosto

Tenho em mim saudades dos beijos não beijados

a maciez aveludada dos seios não tocados

e as juras de amor na garganta entaladas

Tenho em mim nostalgia do que não aconteceu

tristeza das coisas não perdidas

e o pesar dos lutos daquilo que nunca se deu

 

11 de setembro

É perto da meia-noite

e eu não lavei os pratos

não tomei banho

não vesti o pijama

e o ar-condicionado

continua desligado

É perto da meia-noite

ainda estou acordado

a sirene de uma ambulância passa

a vizinha da frente já apagou a luz do quarto

um rojão estoura longe

o Flamengo deve ter ganho o campeonato

É perto da meia-noite

e os sonhos me esperam no final da madrugada

 

09 de outubro

Eu vejo o tempo.

O tempo inteiro olho o tempo

quando me dou tempo para enxergar o tempo

O tempo não está no interior dos relógios

nem nos fundos das agendas e dos calendários

O tempo está no íntimo dos ventos

e na superfície impermanente das coisas duráveis.

Tudo que parece morredouro é transitório e mutável

Não é porque há coisas mais longevas do que nós

que elas sejam por isso intermináveis

Acaso vivêssemos bilhões de anos

poderíamos testemunhar o nascer e o expandir do Universo

Acaso continuássemos vivendo um tanto mais de bilhões de anos

poderíamos ser capazes até de ver o minguar do mesmo Universo

Talvez

Quem sabe?

Eu vejo o tempo

Ele está na ferrugem dos pregos

e na parede úmida e mofada da sala

 

14 de novembro

Hoje é o dia em que festejo mais uma órbita da Terra

Minhas ilusões estão mais amadurecidas

Meus sonhos envelheceram

Alguns desejos caducaram

As roupas amanheceram puídas

Minha memória tem visitado mais cemitérios

Não encontro meus sapatos cavalo de aço

E minha esposa continua brigando comigo

sentada há décadas ao meu lado

 

01 de dezembro

Estou a um mês do final do ano

Vou aproveitar o décimo-terceiro e cortar o cabelo

aparar as sobrancelhas e fazer a barba

comprar uma camisa vermelho-bordô

hidratar a face e passar corretivo nas olheiras

e me preparar para tirar o próximo retrato

 

Comentários +

Comentários3

  • Madaya Silva

    Parabéns belíssima cronologia do tempo com a vida. Excelente criatividade poética.
    Abraços !!!

  • Letícia Alves

    Belíssimo!!!!!!!!

  • CORASSIS

    Belo como Pernambuco !
    Parabéns pela inspiração poética de mais alto nível .
    Abraços .



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