07 de janeiro
Encontrei-me comigo no espelho
Estava um dia mais velho
Não me lembro que dia foi esse
em que ultrapassei o rosto
que havia deixado no retrato
que tirei no final do ano passado
22 de fevereiro
Amanhã começa o carnaval
e eu vou para o lado contrário
levando na bagagem
duas máscaras
e meia dúzia de fantasias de palhaço
02 de março
Um poema começou a cair
sobre o chão do dia
como uma fina chuva de verão
Apanhei um punhado de versos
e com eles um repentino resfriado
15 de abril
Que penso eu
neste instante
em que não penso nada?
Mas como posso estar
pensando alguma coisa
se agora estou pensando
que estou pensando em nada?
29 de maio
Cheguei atrasado no ontem que já tinha ido embora
Agora tenho um dia a menos na história
como se um parágrafo fosse arrancado da minha biografia
Será que foi o dia em que morri
ou será que nele fui então feliz?
Será que era ali que estava a princesa encantada
das fábulas e dos contos infantis?
14 de junho
Irei para depois do amanhã
do amanhã que tenho hoje
realizar os desejos de ontem
que vieram dos sonhos que tive no passado
E quando este presente me for pretérito
vou voltar para o futuro que não devia ter deixado
e me lembrar para não chegar de novo atrasado
03 de julho
Hoje fiz um poema que vai me levar
para o outro lado da muralha da China
e ir aonde os ventos não chegam
escalar as montanhas nevadas
percorrendo a pé todo o Tibete
até chegar à Terra do Nunca
e de lá nunca mais voltar
Com este poema vou atravessar
o espelho que Alice não atravessou
seguir os tijolos amarelos da estrada
navegar por sobre Atlântidas naufragadas
me banhar nas águas claras da Macedônia
e viver as aventuras de Simbad
que nas noites estreladas minha avó contava
25 de agosto
Tenho em mim saudades dos beijos não beijados
a maciez aveludada dos seios não tocados
e as juras de amor na garganta entaladas
Tenho em mim nostalgia do que não aconteceu
tristeza das coisas não perdidas
e o pesar dos lutos daquilo que nunca se deu
11 de setembro
É perto da meia-noite
e eu não lavei os pratos
não tomei banho
não vesti o pijama
e o ar-condicionado
continua desligado
É perto da meia-noite
ainda estou acordado
a sirene de uma ambulância passa
a vizinha da frente já apagou a luz do quarto
um rojão estoura longe
o Flamengo deve ter ganho o campeonato
É perto da meia-noite
e os sonhos me esperam no final da madrugada
09 de outubro
Eu vejo o tempo.
O tempo inteiro olho o tempo
quando me dou tempo para enxergar o tempo
O tempo não está no interior dos relógios
nem nos fundos das agendas e dos calendários
O tempo está no íntimo dos ventos
e na superfície impermanente das coisas duráveis.
Tudo que parece morredouro é transitório e mutável
Não é porque há coisas mais longevas do que nós
que elas sejam por isso intermináveis
Acaso vivêssemos bilhões de anos
poderíamos testemunhar o nascer e o expandir do Universo
Acaso continuássemos vivendo um tanto mais de bilhões de anos
poderíamos ser capazes até de ver o minguar do mesmo Universo
Talvez
Quem sabe?
Eu vejo o tempo
Ele está na ferrugem dos pregos
e na parede úmida e mofada da sala
14 de novembro
Hoje é o dia em que festejo mais uma órbita da Terra
Minhas ilusões estão mais amadurecidas
Meus sonhos envelheceram
Alguns desejos caducaram
As roupas amanheceram puídas
Minha memória tem visitado mais cemitérios
Não encontro meus sapatos cavalo de aço
E minha esposa continua brigando comigo
sentada há décadas ao meu lado
01 de dezembro
Estou a um mês do final do ano
Vou aproveitar o décimo-terceiro e cortar o cabelo
aparar as sobrancelhas e fazer a barba
comprar uma camisa vermelho-bordô
hidratar a face e passar corretivo nas olheiras
e me preparar para tirar o próximo retrato