CARTA EXTRAVIADA

Cecilia

 

                                                                                                                                                                         

            Como sinto a sua falta!   Durante o dia o trabalho me ocupa, o tempo é curto.   Mas a noite é muito longa e muito triste sem você.  

 Vez por outra, de tardezinha, os ajudantes param no meu rancho para dois dedos de prosa e de caninha.   São homens simples, rudes, muito sábios, conhecedores do lugar, do rio, dos bichos, dos perigos.   Contam casos, uns pitorescos, outros tristes, alguns incríveis.

            Acreditam em lendas, entes, rezas, esconjuros.  Presto atenção, quero respeitar o mundo deles, onde agora vivo. Com a mesma seriedade com que me alertam contra  redemoinhos do rio e  tocaias de onças, previnem contra o  Caipora e o Boi-Tatá.   Principalmente, contra o canto feiticeiro da Uiara, que atrai para a morte certa homens de todas as idades.   Você gostaria dessas conversas sossegadas, ao pé do fogo. De conhecer mitos e causos do sertão.    Organize-se, é quase impossível, mas se você viesse passar alguns dias... seria o paraíso.

            Na verdade, isto   é o paraíso.   O bíblico não poderia ser mais majestoso e arrebatador.    O rio profundo e largo, que esconde a outra margem, a muralha impenetrável da mata, o alto céu coalhado de estrelas.   Tudo tão desmedido e maravilhoso  que nos obriga a aceitar, de bom grado, a pequenez do homem no universo.  É como se estivéssemos na aurora do mundo, o mistério latejando dentro e fora de nós.  

Percebo, claramente que, entre o sertão e a cidade, nos movemos em espaços diferentes. Nos grandes centros urbanos perdemos o contato com o chão.   Estamos separados dele por andares e andares, ou, pelo menos protegemos os pés com assoalho, carpete, sapatos e meias.   Perdemos o contato com a atmosfera, dela nos isolam paredes, cortinas, roupas, ar condicionado.  Perdemos o contato com os ciclos da natureza: Ao amanhecer, dormimos, ao anoitecer, trabalhamos, nos divertimos durante a madrugada.     Minha querida, é preciso que venha, quero lhe mostrar a natureza em estado bruto, a água escura do rio, os cheiros do ar limpo.  O rumor dos bichos, o frio delicioso da noite, tanta coisa... 

            Reli o escrito, pareceu-me que critico, reprovo, nossa vida civilizada.   Não é isso.   O mundo e a história não andam para trás.   Só vivemos bem adaptados ao nosso meio,  perfeitamente de acordo com o lugar e a época que nos couberam.

            Mas aconteceu que este garimpo, tão longe de casa, tão dentro do mato, me imergiu em outro espaço, antigo e simples, com poucas normas, muitos perigos e alguns segredos.   Diferente de nosso habitat programado e confortável, regrado e previsível.    Nem um, nem outro são seguros, mas as ameaças são diferentes, assim como as conquistas.  Foi difícil acostumar, e o corpo se adaptou mais depressa que o espírito.

            É bom banhar na correnteza , caçar e pescar para comer ,  reconhecer as vozes dos animais, acompanhar o rasto fresco de um bicho.   É bom trabalhar até a completa exaustão. E, à noite como um eremita, ficar completamente só  com meus pensamentos,  planos e  lembranças.   É nessa hora que você mais me falta.  Lembro-me dos nossos momentos e, de repente ouço, nítida e doce, sua voz chamando.   Ergo-me de um salto, tenho a ilusão de vislumbrar a seda clara de um vestido sumindo no arvoredo.  Quase enlouqueço de saudades. 

            Nas cercanias há raros moradores, e de pouca prosa, gostaria de conversar mais.   Comecei a falar com os bichos, não é novidade, sempre conversei com meu cão.    Agora tenho longos papos com bichos de pelo e penas, de couro e escamas.  Outro dia, um pouco grilado, senti um enorme jequitibá se comunicar comigo, sem palavras. Gostei, agora falo também com  árvores e já olho as pedras como possíveis interlocutores...

            Conheço você, minha querida, posso imaginá-la, narizinho franzido, comentando,   entre  ácida  e  divertida:  Então,  meses de mato transformaram meu sábio engenheiro em capiau natureba?

            Ainda não, mas estou dividido em dois, como na história do médico e o monstro.    Sou um no sertão, com sentidos e instintos sempre alerta, outro na cidade, com  raciocínio e  civilidade prevalecendo. Nos dois ambientes sinto-me estranho, incompleto, fora de lugar.   Nada tenho  a esconder, ao contrário,  abro-me para  você  me entender,  contemplar minha nova face.   Atormenta-me pensar como ficará desfigurado o nosso amor, se você me conhecer só pela metade! Falo, me explico, me revelo, mas se você não vier aqui, e mergulhar neste éden primitivo, nunca compreenderá.

            Coisas acontecem às margens dos grandes rios, eles têm sortilégios.    Começou assim. Veio, em noite de lua, deslizando pelo rio, uma cantiga dolente, nem triste, nem alegre.   Apenas uma jovem voz feminina, totalmente impossível nesta solidão.   Perto não há vilarejos, não há mulheres, e dista muitas léguas o pequeno aldeamento.

            Eu já ouvira a lenda da Uiara, a alva mãe d’agua de olhos dourados, que seduz pescadores descuidados, e canta em noites de lua, penteando longos cabelos verdes.      Mudei bastante, mas ainda não creio em mitos.  Só poderia ser o vento, trazendo o som de muito longe.

            Na outra noite a mesma lua, a mesma cantiga, mais próxima.   A voz muito suave, a noite perfumada... E, nas outras noites   a mesma toada, cada vez mais perto, ressoando longamente, como um chamado.   Na última noite clara parecia vir do atracadouro. Do alto do barranco vislumbrei uma figura esbelta de mulher, nua, com uma flor nos cabelos.    Busquei o binóculo, mas só vi o barco vazio, oscilando depois de um mergulho. E a flor, grande e  branca, balançando ao sabor das ondas.

            Entrou o quarto minguante, a toada cessou. Era a Uiara, que só canta em noites claras? Chegou a lua nova, depois a crescente, nada de cantigas.    A magia acabando voltei a dormir melhor, o serviço a render. Mas contava os dias, examinava o céu, ansioso pela lua cheia.

            No plenilúnio a cantiga voltou, muito perto do rancho, e alguém  deslizou para dentro, queixando-se com voz de mel e pétalas:  Eu te chamei tanto...tanto... tanto...   

Estou vivo, cheio de dúvidas.   Existem Uiaras de cabelo negro? Se era uma delas, como sobrevivi? Se era humana, de onde surgiu a moça, para onde sumiu? Ou não aconteceu nada, sonhei, delirei, fiquei lunático?

            Amada do meu coração, desconfio seriamente que viver só me perturba o juízo.  Preciso que você venha, com urgência.   Dê um jeito, tire férias, tome um avião. Venha!      

            Tem que ser logo, antes que se erga de novo a lua cheia.

  1.  

 

                                                         

 

 

 

 

 

               

  • Autor: Cecília Cosentino (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 30 de setembro de 2022 13:09
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 23
Comentários +

Comentários2

  • CORASSIS

    Viagem no escrito ! e confesso que preciso deste paraíso .

    Parabéns querida Cecília, abraço .

    • Cecilia

      Obrigada, Corassis! suas palavras me animam muito. Qrande abraço

    • Ema Machado

      Uma delícia de carta. Uma viagem a um universo meticulosamente perfeito. Parabéns, menina! Amei ler!



    Para poder comentar e avaliar este poema, deve estar registrado. Registrar aqui ou se você já está registrado, login aqui.