Cecilia

ambição

AMBIÇÃO

 

Ganhamos!   Depois da canseira da campanha, da excitação da vitória, falta só organizar a  performance da posse.

Minuciosa, preparava-se.    Esposa de político,   vítima fácil de jornalistas e fotógrafos, tem que chegar impecável ao pódio de primeira dama..

Sim, conhecia o seu papel, estudara muito.  Cursos de línguas, aulas de etiqueta.  Livros de Glorinha Kalil na cabeceira, entre  revistas de economia e grossos compêndios de arte, história, geografia.

O mais difícil do árduo programa que se impôs, desde que ficaram animadoras as chances de Pedro vencer nas convenções do partido, foi mesmo perder dez quilos.  

Duas semanas de spa.   Caro.   Meses de malhação pesada.   Duro.   Nunca mais comida de verdade, farta, cheirosa, temperada.    Absolutamente desumano.

Conseguiu, com persistência e disciplina.   Não que fosse roliça, longe disso.   Alta, linda, ossos fortes, carnes firmes.   Mas...

Mas... primeira dama tem que parecer princesa,  refinada.  Jamais desejável, de encher os olhos.   Até  Evita, egressa dos cabarés portenhos, chegou ao topo com aura de santa.   Nas democracias, primeira dama é a figura mais próxima  da eterna  Cinderela, seu sonho de menina.

Aos seus sonhos de princesa,  faltava apenas o perfil.  De plebéia o moreno dourado da pele,   a massa escandalosa dos cabelos, as curvas memoráveis.  Princesa, só com regime feroz.   Fez.   O que não faria?

     Com o necessário sacrifício, esculpiu, centímetro a centímetro, a figura adequada ao sonho     Chegaria ao palácio irretocável, como seus ícones: Jackeline e lady Di..  Continuou linda, apenas acentuou-se a diferença entre beleza e  explendor.  

O pior é que Pedro,  talvez brincando, talvez cobrando, confessava  saudades da mulher com quem se casara.   Bobagem,  o marido reconhecia seu esforço em merecer a posição que  estavam, ambos, é claro, conquistando. 

E isso, agora?   Uma carta anônima  empanando a alegria da vitória ?

Não pode ser.   Engano.   Alguém distorceu os fatos.

Não pode ser.   Despeito.   Alguma mal amada se ralando de inveja.

Não pode ser.   Mentira.   Vingança mesquinha de adversário derrotado.

Não pode ser.   Nosso casamento é uma rocha.  Será?  

Não pode ser.   Não mesmo?  Todos prevaricam, é normal.   E essas secretárias afoitas, se oferecendo o tempo todo?

Não pode ser...  Pode bem ser.    Coisas acontecem....  Temos que resolver isso!

Decidida, passou do susto às providências.   Briga?   Nem pensar.   Caso mais para estratégias que escaramuças.   Reconquistar posições,  restaurar o equilíbrio.   Já.  Agora!

Conhecer o inimigo, saber com o que Pedro se encanta.    

Oh!  Meu Deus, será muito jovem?   Oh!  Essas moças em flor, alegria de meninas e fogo de bacantes?

 Oh! Meu Deus, será muito linda?   O que fazer diante de femeas deslumbrantes, que justificam qualquer tipo de loucura?

Oh! Meu Deus, será um moderno monstro da emancipação feminina, executiva culta, viajada, interessantíssima?

Realmente, ainda não esgotara todas as artimanhas da sofisticação, todos os recursos da estética.  Capricharia mais,  faria  qualquer sacrifício.

No restaurante escolheu mesa pequena, discreta.   Por ora, água tônica com limão e gelo.   Esperança enorme que fosse apenas um trote maldoso.

Chegaram logo.   Antes de vê-los, sentiu o frisson que percorreu o ambiente.   Ah!  Quantas  vezes merecera essa deliciosa homenagem tropical!   À entrada de uma bela mulher os homens se voltam, estufam o peito, encolhem a barriga, alteiam a cabeça, e corre um surdo rumor de fundas inspirações.   Cessam  conversas,  tinir de talheres,  acordes de piano, e, no minuto de silêncio de profunda reverência, a deusa passa.

O casal sentou-se perto,  foco ideal para o exame implacável.   Bonita?   Sim, não muito.   Nova?   Nem tanto.   Chic?   Nada mesmo..  Alta e atraente,  corpo perfeito de linhas suntuosas.

Oh!   Meu Deus!   Quantas vezes Pedro reclamara  de sua mania de regime?   Quantas  vezes confessara preferir sua silhueta anterior?   Impelida pelo modismo, cega pela ambição, ignorara o perigo.   E agora?   Agora, já, imediatamente, iniciar a fácil viagem de volta para o perfil preferido de Pedro.

Estudou o menu com carinho, jantou devagar, saboreando cada bocado com enlêvo de gourmet.  Reencontrou prazeres perdidos :  o aroma frutado do vinho,  a vitalidade da carne vermelha, a textura aveludada do molho, a misteriosa alquimia dos temperos.  

 E quando, à beira do êxtase, seu olhar semicerrado envolveu ao mesmo tempo a sobremesa impecável e os ombros adorados do marido, soube que ganharia a  batalha.

A face da rival foi  desbotando, confundindo-se  com a decoração do ambiente.  Em pouco tempo tiraria do cenário essa  figurinha  perfeitamente descartável.

Agora, só falta mesmo planejar a  performance da posse.

 

                                                                                                                             

  • Autor: Cecília Cosentino (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 25 de Maio de 2021 13:17
  • Categoria: Conto
  • Visualizações: 19

Comentários3

  • Ema Machado

    Um belo e perfeito conto. Parabéns, querida!

    • Cecilia

      Obrigada, querida amiga! Fico feliz com sua apreciação. Grande abraço.

    • Shmuel

      Muito bom! Um conto com detalhes cinematográfico. Visualei cada momento.
      Abraços,

      • Cecilia

        Obrigada, Shmuel! Que alegria ter sido apreciada por você! Grande abraço.

      • Claudio Reis

        Magnífico!!!
        Um conto e tanto, um belo conto para poeta ler!
        Cecília poetisa querida, parabéns!
        Abraços

        • Cecilia

          Cláudio, muito obrigada! Sempre me surpreende que jovens, como você, se agradem do que escrevo. Demoro a publicar... A aceitação dos moços me anima e renova. Abraço.



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