NO
Reencontro
Sempre voltava ali em pensamento e agora lá estava. A velha e pacata cidade interiorana de ruelas entupidas de pó e estrume. Havia animais por perto, aquele odor era-lhe peculiar. Deixara aí sua infância perdida, por isso voltava, precisava recupera-la, ou nunca mais sentir-se-ia inteiro...
Walter caminhava pela praça central, as lembranças o acompanhavam persistentes. Não cederia assim tão fácil, ele não deixaria se levar com facilidade - encontrava refúgio em todos os sorrisos e olhares dos velhos moradores. Embora não reconhecesse a todos, teimavam em cumprimenta-lo, ocupando- lhe o pensamento. Travava árdua batalha, nas sucessivas tentativas em decifrar os diversos rostos enrugados e cansados que lhe sorriam, e a tantas mãos calejadas as quais apertava. Ao ver-se só, dirigiu-se à praça central subindo as escadas do velho coreto. O olhar quase afogou ao contemplar a infância na pequena igreja onde fizera a primeira comunhão - único lugar que frequentava com os tios aos domingos - tempos que tentara em vão esquecer.
Sem escapatória, finalmente deixa-se levar em uma viagem, a qual pensava nunca mais pudesse fazer... Adentrava na máquina do tempo - ela o levava de volta, onde perdeu o que veio buscar...
Nunca havia tempo para brincar, embora muito pequeno, tinha intermináveis tarefas: alimentar animais, colher verduras ou vegetais para mãe preparar o almoço, e ainda, buscar água na bica para encher os potes na cozinha. O pai e o irmão mais velho trabalhavam na fazenda do tio, voltavam apenas ao final da tarde. Ele sabia desde então que, esse seria também seu destino - somente na fazenda poderia aprender a ler e escrever. Por isso, o irmão acompanhava o pai. Após a aula ajudava na lida da fazenda, e assim pagava os estudos.
- Walter, preciso de ovos filho!
- Walter, preciso de lenha para alimentar o fogão! - Gritava a mãe. Ele ainda a ouvia, longe...
E assim foi, até o fatídico dia em que o pai caiu enfermo - não pode mais trabalhar e a mãe passou a substituí-lo na lida da fazenda.
Ele era franzino, nasceu fraquinho, tinha apenas oito anos; o pai acamado tornou-se a sua principal tarefa. Não havia alternativa, tinha que ser forte, alimenta-lo e cuidar para que não passasse necessidades. Porém, aquele encargo não durou muito. O pai faleceu um ano mais tarde, seguido pela mãe que morreu de cansaço e tristeza pouco tempo depois.
Após o enterro da mãe, os tios os levaram definitivamente para fazenda, a ele e o irmão Pedro. Ali começou o suplício, trabalhavam muito, não sobrava tempo para estudar- diziam-lhes que era perda de tempo.
Às vezes, fugiam para descansar e iam nadar na cachoeira. Quando apanhados, eram severamente punidos. Como castigo os deixavam sem comer, ainda tinham o serviço dobrado.
Tudo aconteceu inesperadamente, o irmão completara dezoito anos; revoltado com aquela situação, decidiu partir levando-o junto. Esconderam- no em um caminhão que levava porcos para o abate - ainda se lembrava do cheiro e o quanto fora pisado. Pedro viajava na boleia, ajudaria a entregar a encomenda no frigorífico da cidade vizinha. O motorista não sabia do plano, não o tinha visto - ele descera antes de entrar no frigorífico, antes que o portão fosse aberto. E assim foi...
Cansados e com fome, viram-se na estrada. Não foi fácil, andaram muito, pegaram carona e se afastaram dos tios. Walter ainda se lembrava das noites de frio dormindo nas ruas... Dos olhares desconfiados, e do seu, extasiado com a grandeza da cidade ao chegar ao centro de São Paulo. Sentiu-se um ser em outro planeta. E foi ali, que puderam crescer, tornaram-se homens. Durante o dia lavavam carro, engraxaram sapatos até conseguirem um quarto na periferia. Tempos depois, ele e o irmão passaram a estudar a noite . Tempos depois, arrumaram bons empregos e puderam cursar faculdade. Pedro, formou-se em economia e foi contratado por uma grande empresa de exportação. Enquanto ele, decidiu ser veterinário - sempre gostou de animais, conseguiu montar a própria clínica veterinária e era bem-sucedido.
Embora estivesse bem financeiramente, as lembranças da infância o atormentavam - precisou voltar, só assim conseguiria seguir em paz.
De volta ao presente... Seguiria, iria até à fazenda dos tios. Não sabia onde ficava, mas sabia a quem procurar. Pitangui era um lugar pequeno, não seria difícil conseguir informação. Dirigiu-se à casa paroquial, uma velha senhora ali se encontrava, se empenhava em limpar os móveis.
- Boa tarde senhora! – Será, que poderia por favor, informar onde encontro o pároco da igreja?
- Sim, Senhor! - Posso sim. Ele já está vindo para cá. Foi descansar depois do almoço e está na sacristia rezando.
Ela nem fechara a boca e o velho padre entra andando com dificuldade.
- Em que posso ajuda-lo meu jovem? - O que procura?
Estava velho e fragilizado, mas ele nunca iria esquecer do bom padre João. Sempre pedia que ele o esperasse ao final da missa. O levava à casa paroquial e lhe oferecia leite quentinho com biscoitos. Dizia precisar alimentar-se direito, mostrava-se como um pai - conversava com os tios para que o poupassem no trabalho, embora nunca fosse ouvido.
- Olá, padre. Sou Walter, lembra-se de mim? – O Senhor...
- Claro que me lembro! - Walter, o menino pequenino e faminto.
- Onde se escondeu esses anos todos? – Seus tios os procuraram por anos... - Padre João calou de repente.
- Por isso estou aqui padre. Preciso saber o que aconteceu com eles, com nossa terra. Não sei chegar na fazenda. Saí de lá ainda menino.
- Bem, posso pedir a alguém que o leve, mas, aviso: não irá gostar, do que encontrará lá...
Estava a caminho, o carroceiro que o levava, seguia calado, não abrira a boca. Ele olhava a mata a sua volta, estava seca, parecia que não chovia há tempos. Após andarem pela trilha de terra, em fim chegaram a porteira da fazenda, ainda era a mesma, só estava caindo aos pedaços.
- O senhor quer que espere? – Perguntou o carroceiro carrancudo ao receber o pagamento.
- Não precisa – Não sei quando vou voltar.
Walter abriu a porteira e seguiu adiante, a casa da fazenda ficava do outro lado do morro, certamente ninguém perceberia sua entrada.
Tudo parecia como antes. O tempo parara ali, diferente apenas a seca que castigava à terra e tornava tudo empoeirado.
Ouviu o trotar de um cavalo, continuou andando até o avistar na trilha já no topo do monte.
- Ei, quem é você? – Essa propriedade é particular - Perguntou a amazona do alto do seu cavalo.
- Sei disso! – Sou sobrinho do dono – meu nome é Walter.
- Meu tio está?
- Vai saber quando chegar à casa. - Disse a amazona. Saiu esporeando o cavalo em direção contrária.
E ele chegou... Bateu na porta com o velho argolão de ferro - o som da batida fez arrepiar- lhe os pelos. A casa parecia sofrer, como possuída de sentimentos, era seu aquele gemido. Passos no assoalho de madeira - logo a porta foi aberta.
- Posso ajudar?
Reconhece a senhora de cabelos brancos, rosto enrugado e olhar cansado - era sua tia. Não havia mais o olhar altivo, não restara nada da voz imponente e ríspida. Era perceptível a dificuldade para manter-se em pé a sua frente.
- Sou eu tia. Seu sobrinho Walter - Lembra? – Filho de sua irmã Graciana.
- Não tenho sobrinho! – Morreram há muitos anos!
Enquanto falava as lágrimas escorreram- lhe pelas faces. Walter a conduziu até centro da sala onde havia uma enorme mesa com pesadas cadeiras, afastou uma para acomoda-la e depois sentou-se próximo a ela.
- Não morremos tia - Nem eu, nem o Pedro.
- Onde estavam quando precisei de vocês? – Enterrei seu tio, sozinha. Ele permaneceu na cama por longos anos após o acidente, caiu do cavalo. Procuramos vocês por toda parte. Disseram, que haviam morrido na estrada.
- É uma longa história - Fomos para São Paulo, estudamos e trabalhamos lá.
- Por que voltou então? – Ver se deixamos algo para vocês? – Não sobrou nada além de dívidas, eu garanto.
- Não, tia - Voltei porque queria me reencontrar - Aqui deixei minhas raízes, precisava voltar – Fui embora muito jovem, era apenas um menino de onze anos.
- Sei, talvez sintam raiva de nós. Sei que fomos duros demais, mas, seu tio achava que deveria torna-los homens fortes. - Dizia que tudo seria de vocês um dia já que não possuíamos filhos, mas não sabíamos como se sentiam.
- Seu tio morreu cheio de remorso, sabia que vocês haviam fugido por causa dele, eu sempre dizia ser duro demais com vocês.
Walter ouvia em silêncio, não sabia o que dizer. O rancor dissipou totalmente - ali, na frente da tia o mundo mudava de cor, sentia- se renascer. Não havia mais nada o que dizer, ela e o tio pagaram os pecados, agora precisava de cuidados e ele estava disposto a aliviar-lhe o peso.
- Tia, quando cheguei, havia uma moça no caminho... Posso perguntar quem é?
- Você encontrou com a Anita? É filha do capataz da fazenda, os únicos empregados que permaneceram aqui depois da morte de seu tio. É veterinária, ela quem olha os animais das redondezas, estava indo ajudar uma vaca a parir. Graças a Deus! Ela e o irmão ajudam a manter as coisas andando na fazenda. Até você aparecer, eu pensava em deixar tudo para ela e a família, agora sei ser preciso refazer o testamento...
- Pensaremos nisso depois tia, quero apenas um banho na cachoeira -Ainda está lá?
- Com pouca água, mas está sim.
E ele não esperou, deu um beijo na tia e correu ao reencontro da infância - ela agora lhe sorria, como o sorriso leve que gradualmente se desenhava nos lábios da tia...
- Autor: Ema Machado (Pseudónimo ( Offline)
- Publicado: 15 de janeiro de 2021 23:06
- Comentário do autor sobre o poema: Às vezes, a vida nos reserva situações as quais tentamos sepultar. Porém, faz-se necessário um recomeço, ou seremos perseguidos por fantasmas em nossa mente...
- Categoria: Conto
- Visualizações: 29
Comentários5
Um conto poético de singular beleza. Uma historia comovente trazendo reflexões de extrema importância para o compreender do conviver familiar..A sensibilidade da poetisa na narrativa do conto faz envolver o sentimento do leitor nas máximas.
Belo e comovente.
Parabéns poetisa Ema Machado.
Abraço.
Bonito, Ema Machado! Reencontro passa como um filme na cabeça da gente. Senti um clima de romance no ar. Vamos aguardar as próximas publicações.
Abraços.
Gratidão, amigo Shimul! Vejamos a possibilidade de uma continuidade.
Que conto!!!
Lindo e emocionante 1
A vida ensina e disciplina
esperamos a continuação!!!
Parabéns Ema
Abraços
Gratidão, Corassis! Vejamos a possibilidade de uma continuação, Grande abraço,
Belo conto, Ema, as perspetivas criadas apenas com nossas percepção falhas podem nos levar a erros e injustiças. É sempre saudável conhecer o olhar do outro. Seu conto me trouxe essa reflexão.
Abraço
Obrigada, Hébrom. É isso mesmo, às vezes carregamos pesos desnecessários, por conta de nossa incapacidade de ver o lado do outro em suas ações desmedidas. Pode não ser o que parece, não é mesmo?
Senti-me agarrado do início ao fim, dá para ver que tem continuação e está muito bem escrito, mas se fosse um conto e acabasse aqui ou até um pouco antes seria um conto épico. muito obrigado pela partilha de algo tão bem conseguido
Gratidão, pela leitura! Bem, até agora não havia pensado em uma continuação... Grande abraço,
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