Ema Machado

Despertar de um Coração


Aviso de ausência de Ema Machado
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Despertar de um coração

Ema Machado

 

 Você já parou para pensar? Muito do que vivemos não é por opção, muito do que sentimos, não acorre por uma escolha. Você pode até achar tratar-se de demagogia, porém reflita, verá que tenho razão. Talvez, já tenha pensado algo parecido, quem sabe o assunto o desperte (nem um pouco pretensioso!). Bem, deixemos isso de lado e vamos ao que interessa. Irás compreender adiante, ao longo do que vou contar…

Quando nasci... Ou seria... Quando minha dona nasceu... Ou melhor, quando nascemos (isso, porque ela precisa de mim para existir, e eu dela; é claro!) esperei ansiosamente por alimento (não sabia ainda o significado do que queria), tudo o que pude sentir, resumia-se na adorável sensação de estar vivo, e isso eu precisava dizer - bati feito louco. Por mais que batesse, não me ouviam e gradualmente fui me acostumando. Diminuí o ritmo e passei a esperar - acreditava que as coisas aconteceriam ao seu tempo e assim foi. Também aos poucos recebia estímulos - minha dona era racional (ouvi isso de alguém, não me lembro quem), não se manifestava por qualquer coisa e quando o fazia, era intuitivo; sentindo fome, frio ou falta do corpo no qual fomos gerados.

Aos poucos fomos nos comunicando - minha dona enviava um sentir gostoso quando estava próxima àquela a quem chama de “mamãe”. Esse, foi o primeiro sentimento ao qual guardei e que jamais seria apagado de minha “memória”. Quando mamãe não estava, aos prantos minha dona feria-me - sentia tanta dor que desejava parar. Lembro-me bem, na maioria das vezes, nossa separação ocorria quando mamãe nos deixava na escola, dizia que iria trabalhar. Ao final do dia quando regressava, sentíamos aquele “calorzinho” delicioso, momento do reencontro de nós três – upa! Pirei! - Apenas dois - afinal, sou parte dela…

Nossa infância foi tranquila, reinamos absolutos - mamãe não quis mais filhos e encheu-nos de mimos.  Bastou chegar à adolescência para iniciar meu suplício…

Com hormônios multiplicados, minha dona não me deixava quieto. Passei a receber sentires ruins, momentos aos quais, ela sempre denominava como sendo: “raiva”; embora momentâneos, os recebia quase todos os dias: por discordâncias com os professores, colegas de classe, atraso do motorista do escolar e outros tantos. - Pobre de mim! - defendia- me como podia - tentava expulsa-los, bombeava forte o  que nos mantinha.

Certo dia, os olhos nos apresentaram a uma nova pessoa. Senti aquele “calorzinho” e confesso: fiquei apertado de tanto medo. Não me contive e fraquejei, quase derreto inteiro... Minha dona também - liberou milhões de hormônios por todos os poros. Nosso comandante cérebro, coitado! -  até então racional, perdeu o juízo – levou-nos para outro universo: o mundo das nuvens…

Foram muitos, os bons e maus momentos, como tudo passa (isso descobri tempos depois) e entre um olhar e outro, eu não sabia qual sentir seria duradouro (esperava uma trégua) - minha dona não era muito constante, a essa altura, nem eu - batia por qualquer calorzinho a mim enviado. Completávamos quinze anos de existência.

Ainda me lembro da bela festa surpresa que mamãe nos preparou - recebi enormes doses de euforia - este nome aprendi com o comandante, também os de outros sentimentos; alguns eu acolhia, outros, o comandante decidia o destino. Às vezes até aconselhava-me fechar as portas...

Passou o tempo (bons tempos), avolumaram-se nossas responsabilidades. Agora, eu vivia sobrecarregado com aumento de afetos e desafetos de minha dona. Mamãe ia envelhecendo e a poupávamos - já não precisávamos tanto de colo... Minha dona passava horas a fio entre os livros, celular e computadores. Eu, sinceramente (não queria fraquejar) sentia falta daquele “calorzinho” da infância.

Um dia, sem nenhum aviso ou explicação, ela despertou-me da rotina – Aconteceu ao encontrar um amigo da faculdade; seria um fato natural (ela sempre saía com os amigos) se ele não ultrapassasse a linha da serenidade, despertando-nos com um beijo - recebi uma dose tão grande de “estímulo” que até acabei ouvindo aquele meu tum! tum diferente - sincronizamos na hora! Encontrei nele um motivo para bater mais forte…

Os dias ganharam outro sentido, nos acostumamos ao bater do coração de Caio (esse era o nome que nos fazia querer saltar de alegria). Clara, minha dona, não queria mais afastar-se dele, e eu, tão pouco. Recordo-me daquele dia em que Caio viajou, senti-me tão triste que acabei contaminando minha dona. Ela acabou doente de tanta saudade. Pouco tempo depois descobri como era amar alguém que não nos queria: Caio foi embora para sempre, interessou-se por outra, e eu… Não desejava outro coração, além do dele…

Com o passar do tempo as coisas mudaram e gradualmente fui curado. Clara se entregou ao nosso comandante cérebro e guiada por ele, formou-se em medicina. Acabou enamorada pela profissão. Passei a receber outro sentimento, até então, desconhecido: compaixão - queria acolher a todos que nos buscavam. Estava sempre repleto de satisfação.

Pensei nunca mais abriria as portas àquele sentimento que tanto nos feriu, porém, minha dona acabou por envia-lo novamente a mim... Dessa vez, ele chama-se Paulo, um cirurgião do hospital onde trabalhávamos. Foi tão intenso que nem tentei escapar; nos unimos poucos meses depois, não saberíamos mais viver separados.

O coração de Paulo era puro, compreensivo e sereno, passei a ouvi-lo. Era tudo que precisávamos - não haveria sentimento igual ou maior (pensei), me sentia completo...

Certo dia percebi algo diferente, um som parecido com o meu, estava tão próximo... Não havia como não estar ali comigo... Ele também fazia parte do nosso corpo.

Nunca senti nada parecido - outro coração seria gerado com meu auxílio, seria uma réplica de mim.

Quando deixou nosso corpo, eu também queria sair. Paulo e mamãe choravam e sorriam. Foi maravilhoso! Descobri um sentir tão diferente e intenso que entendi: mamãe um dia foi parte de mim, agora a entendo... Esse novo sentir seria para sempre meu, pois, embora ame outras pessoas, esse novo ser é outra parte de nós...

 

                                                                           Março de 2018





 

 

  • Autor: Ema Machado (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 24 de Outubro de 2020 18:51
  • Comentário do autor sobre o poema: Relatos de um coração, um passeio por sua trajetória...
  • Categoria: Conto
  • Visualizações: 22

Comentários4

  • Maria dorta

    Belo conto,história com feliz final, levando- nos à reflexão de que somos pecinhas no tabuleiro do jogo da vida!

    • Ema Machado

      Grata, por sua leitura e apreciação!

    • Hébron

      Meu coração se identificou...
      Eu conto ou você conta...
      Conto é com você!
      Abraço!

      • Ema Machado

        Grata, Hébron! Sempre gentil em seus comentários. Grande abraço,

      • @(ND)

        Lindoooooooo, amei seu conto, olha conto pra você degustei cada palavra, que lindo coração! Gratidão Mari pela partilha!

        • Ema Machado

          Obrigada, querida! Que bom! Que gostou, honrada com sua apreciação.

        • lucita

          Me prendeu buscando entender e me emocionei ao ver tanto tum tum...
          Lindo conto...
          UFFA e UAU!
          Parabéns poetisa genial!

          • Ema Machado

            Obrigada, menina! Honra-me seu comentário. Abraço, e tenha um excelente domingo.



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