Cecilia

Todos são suspeitos...

TODOS SÃO SUSPEITOS...

                            Se o início de um novo ano nos leva a contabilizar acertos e erros do anterior, e traz novas esperanças e projetos, que dizer de uma década?   De um século, quando se analisa os acontecimentos numa escala global?    No limiar do milênio somos levados a pensar em toda a história da humanidade, nos últimos dois, três, dez mil anos..

                Nessa linha de pensamento, o Museu Histórico Nacional organizara uma importante retrospectiva, exibindo desde reproduções de desenhos rupestres da pré-história até fotos tridimensionais de conquistas espaciais. O mais importante da mostra era o conjunto de valiosos trabalhos de arte de outros países e épocas, conseguidos por empréstimo através de convênios com grandes museus e colecionadores.   Esse empreendimento exigiu severo treinamento dos funcionários e renovação total do esquema de segurança, já que era esperado um número de visitantes muito maior que o habitual.

O diretor dedicou-se ao treinamento dos vigilantes.   Invariavelmente começava as preleções com seu postulado universal:  Ninguém é inocente, até que se prove o contrário. Todos, absolutamente todos, são suspeitos..    A violência não havia atingido os níveis assustadores dos nossos dias, mas sempre houve espertos para roubar preciosidades, vândalos para cortar telas, loucos para se matar diante de estátuas milenares.    Debaixo da batina dos padres, da saia das velhinhas, na bolsa das madames, na mochila dos estudantes, podem se esconder equipamentos de última geração que põem  em  risco o patrimônio do Museu, e as obras emprestadas.

                   ._ Sr Luís, chegou a senhora das quartas feiras...

                _Verificou os documentos?

                _Sim, senhor.  E liguei para Polícia Federal .  Os dados são: Paulina Bohemer, nascida em Bonn, Alemanha, aos 12 de setembro de 1922.   Imigrou para o Brasil em 1944, durante a guerra.    Viúva de Jacob Rosenfeld, morto na Polonia em 1943.   Sem família, vive modestamente, ensinando piano e canto, em pequena cidade vizinha .    Nenhuma anotação mais.

                _Vou falar com ela.   Estranho, nunca nos havia visitado, e de repente, vem todas as semanas, sempre no mesmo dia, dirige-se sempre à mesma sala, senta-se sempre no mesmo banco, demora-se horas imóvel no mesmo lugar...   O que a traz aqui ?  O que há naquela velha bolsa preta?

_Com licença, D. Paulina, posso sentar-me?   Sou Luís Wurthmann, diretor do Museu.   Desde a inauguração desta ala, vejo a senhora aqui todas as quartas...

                A senhora, beirando os oitenta, elegante apesar da modéstia, levantou os olhos azuis, um pouco embaciados.   A  voz soou agradável,  modulada.                _À vontade, Sr. Wurthmann, muito prazer, sente-se.   Então o senhor sabe o meu nome?   Fiz alguma coisa irregular?

                _Não senhora, imagine!  É que costumamos entrevistar os visitantes habituais, ouvir suas opiniões, sugestões, talvez críticas... Por que a senhora freqüenta o nosso museu?   A senhora é artista, conhecedora de arte, marchante?

                _Não, Sr Wurthmann, só conheço bem música, entendo muito pouco de artes plásticas.  Venho porque gosto muito daqui.   É o lugar onde costumo me entregar ás recordações felizes da minha juventude...

            _D. Paulina, a senhora me desculpe... (não conseguiu evitar um laivo de ironia).  A senhora está me dizendo que vem aqui semanalmente, viajando cem quilômetros, só para recordar?  Apreciamos a sua visita freqüente, ela nos honra, mas não seria mais barato, mais confortável, recordar  no sossego de sua casa?­       _

-Sr. Wurthmann, vou lhe explicar.   As pessoas idosas viajam gratuitamente nos ônibus intermunicipais.   O Museu trouxe  obras novas, de grande valor.   E, às quartas feiras.  o ingresso  é livre...    A  senhora se exprimia bem, educadamente,  a pronúncia um pouco carregadanos erres.   Mas a expressão de descrença do diretor pareceu alterar-lhe a compostura.

                Levantou-se, empertigada.   Tinha um belo porte, e a indignação lhe faiscava nos olhos.   Arregaçou a manga da blusa e exibiu um longo número tatuado no antebraço   _O senhor já viu um desses, Sr. Wurthmann?    O senhor  sabe o que foi a segunda guerra mundial?   O senhor ouviu  falar de Dachau,  Treblinka, Auchwitz?  Nas  câmaras de gás do Holocausto, morreram meu marido e meu filho...    Dentre  milhares de judeus assassinados impiedosamente, eu  me salvei...

                Apontando o soberbo nu  que visitava todas as semanas, disparou:Essa sou eu, fui eu.   Esse foi meu corpo, ao qual devo a vida.    O que me salvou não foi o rosto bonito, a voz de cantora lírica, que os alemães apreciavam tanto...  Mulheres mais lindas foram mortas...  Grandes artistas foram mortos... Crianças foram mortas...O que me arrancou do horror dos campos de concentração   foi esse corpo que está aí.  Tirou-me da Europa arruinada, trouxe-me para o Brasil.

                               _Essa tela é o divisor de águas da minha vida.   Foi pintado por meu marido e nos foi tirado com tudo o que possuíamos.    Fui amada, honrada, rica e feliz até o momento em que a SS arrancou esse quadro da nossa parede.   Por essa tela venho aqui, recordar o que perdi.    Ela me devolve por algumas horas as lindas lembranças da mocidade, a saudade da minha família, as imagens do meu país, os sons  da minha língua... E  principalmente, me faz agradecer a incrível  ventura de estar viva, neste país cheio de sol, onde a guerra nunca passou.

                Foi embora sem olhar para trás, nunca mais voltou.   Luís acompanhou-a até a saída, desmanchando-se em desculpas, sem receber  um olhar.

                Luís ficou mal, o holocausto o perturbava.   Descendente de alemães radicados no Brasil desde o segundo império, criara-se ouvindo terríveis notícias da perseguição sofrida por amigos da família.   Na adolescência lera vorazmente sobre os horrores do nazismo.  Até hoje ,  de alguma forma se sentia culpado peloa na história de sua gente.    Ninguém é inocente...

                Sentou-se pesadamente no mesmo banco, contemplou   os vinte anos de D. Paulina ,    O pintor, magistral e apaixonado, conseguira, com a alva pele iluminar a tela escura, e fazer com que a perfeita  harmonia das curvas despertasse, mais que o instinto, o nobre  sentimento de enlevo e gratidão existência de tanta beleza.    Compreendeu a sobrevivência da senhora.    Que homem monstruoso aceitaria destruir essa maravilha da natureza?

                            Luís só conseguiu esquecer D. Paulina com seu longo número marcado a fogo, porque, realmente, às vésperas do novo milênio , a segurança do Museu estava assoberbada de trabalho.

            Na meia noite do dia 31 de dezembro a tradicional festa pirotécnica foi deslumbrante, inesquecível.  Toda a população ajuntou-se na praia, esperando raiar o primeiro dia do milênio, durante horas espoucaram rojões e morteiros ,  fogos de todas as cores encheram o céu.   Com os estrondos, os vivas, os cantos, não se ouviu explodir uma bomba de fabricação caseira  contra uma janela do museu.    Descoberto o estrago na manhã seguinte, veio a policia técnica, fotografou-se tudo, verificou-se o inventário das obras,

                As câmaras não haviam sido danificadas, a filmagem provava que ninguém entrara pela janela destruída.   Além disso, não havia pegadas,  nada faltava, os prejuízos foram de pouca monta.   Como não houve roubo, nem invasão, o inquérito foi arquivado e o caso atribuído a  molecagem de desordeiros.

                A ala atingida  foi  fechada, os quadros levados para o grande depósito debaixo das escadas, onde imediatamente  se iniciou  o trabalho dos melhores moldureiros  e  restauradores.    Uma eficiente equipe de construção começou a azáfama de cal, tijolo, tinta e vidros, com a intenção de reabrir a nova ala no menor tempo possível.

                Na reabertura descobriu-se o verdadeiro prejuízo.   Durante os trabalhos da reforma a segurança se concentrara nas salas antigas, abertas ao público numeroso, descuidando-se um pouco da ala em obras. Desaparecera inexplicavelmente do depósito uma tela.,    Exatamente o nu de D. Paulina.

                Desconfiado, Luis foi com sua equipe, à cidadezinha onde a senhora residia.   Soube que, na mesma data em que estivera pela última vez no museu,  fora internada com grave problema cardíaco.   Ao se recuperar escrevera, na letra estreita e pontuda dos alemães, uma curta e gentil carta à sua amiga locadora.    Oferecia seus parcos bens como compensação do último aluguel, agradecia e comunicava sua transferência para uma casa de repouso  gratuita, mantida pela colônia judaica.

            A vizinha exibiu a carta, abriu a modesta casa de fundos onde residira D.Paulina, permitiu que os seguranças revistassem tudo cuidadosamente.   Na mais perfeita ordem encontraram o quarto, quase uma cela de mosteiro, a saleta onde dava aulas num pequeno piano. Não havia  quadros,  objetos de valor, nem lembranças do passado.     Amargamente Luís considerou que os fugitivos chegam sempre de mãos vazias, e suas desconfianças se desfizeram.

                Todas as pessoas que trabalhavam no Museu ou tomaram  parte na reforma, assim como os visitantes que tinham qualquer senão na ficha policial, foram interrogados exaustivamente.   O pobre Luís prestou inúmeros depoimentos.  Apesar das diligências policiais, nem rasto do quadro, que no fim do semestre deveria ser devolvido para  Munich.   Realmente, um sério problema, internacional.   O sumiço de uma obra catalogada não se resolve simplesmente com  desculpas, seguro  e indenização

Quase no fim do prazo  Luís recebeu um envelope sem remetente, contendo um cupom amarelo e a seguinte  carta, escrita em conhecida caligrafiah, fina  e pontuda.

Sr Wurthmann

Devo-lh explicações.    Em certa ocasião, alterei-me e fui indelicada, quando o senhor apenas fazia o seu trabalho.   Queira me desculpar.   As amargas recordações que desatei em sua presença fizeram-me mal, adoeci seriamente.    As enfermidades nos dão oportunidade de pensar muito.   Lembrei-me da nossa conversa, percebi   como o senhor estava certo ao me recomendar que cultivasse em casa minhas recordações.   Tratei de fazer isso.

  Já não me resta muito tempo, quero reparar os problemas que lhe causei, tomando por empréstimo uma  tela que, afinal, é minha.  O senhor vai encontrá-la, em perfeito estado, no depósito de bagagens da Estação Central, e poderá retirá-la com o cupom anexo.

Cordialmente,

Paulina Bohemer Rosenfeld.

Luis Wurthmann  guardou a carta, com um sorriso.   D. Paulina estava certa, sempre fora a dona da tela. 

E confirmava seu axioma:  Ninguém é inocente, todos são suspeitos...

 

 

 

.

 

 

                         

  • Autor: Cecília Cosentino (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 7 de Janeiro de 2022 13:46
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 48

Comentários6

  • Maria dorta

    Impressionante poema. Um documentário histórico. Esse é o mundo em que vivemos...chapéu!

    • Cecilia

      Obrigada, Maria. Eu me apoio na generosidade de meus queridos amigos. Suas palavras me levantam..

      • Maria dorta

        Você já está no alto,poetisa!

      • Claudia Casagrande

        Esta é a dona Cecília,. Demora em vir, mas quando dá o ar da graça, arrasa.
        Estava com saudades.
        Um 2022 abençoado. Muito amor e paz.
        beijos

        • Cecilia

          Vou contar: metida a sebo, troquei meu velho windows7 pelo Windows10. Desastre total. Mais perdida que cachorro em dia de mudança. Tentei, tentei, não consegui aprender. Muito menos produzir um mísero texto. Podem rir queridos jovens amigos ...Chamei o Adriano, recuperei meu 7. Não sumo mais. Obrigada, Cláudia. Para vcs também um belo 2022. estou lembrando das minhas promessas. as rebarbas da pandemia ainda me prendem m casa...beijo.

        • Eliabe Lira

          Que belo, encantador, muito bem escrito e discorrido, parabéns, um grande prazer ler os seus maravilhosos trabalhos. Abraços

          • Cecilia

            Muito obrigada, Eliabe. gosto de ouvir, ler, contar histórias. Fiquei feliz que você tenha gostado. Grande abraço

          • Chico Lino

            Cecília, que felicidade sua magistral narrativa…

            Forte abraço…

            • Cecilia

              Obrigada, querido amigo. Abraço.

            • Chico Lino

              Cecília, que felicidade sua magistral narrativa…

              Forte abraço…

            • Sergio Neves

              SERGIO NEVES - ...olha, eu vou confessar que estava "namorando" esse teu escrito há dias...,...vinha, dava uma espiadinha assim "por cima" e...,...não o lia...,...achava-o comprido pra dedéu e nunca havia-me o tempo necessário...(...traduzindo: -acho que era por preguiça mesmo...),...hoje tomei "coragem"...,...e a coisa "engraçada" é que aquela minha impressão inicial sobre a "compridez" do escrito, ao final da leitura "esvaiu-se" por completa, tanto quanto a ponto de eu acabar por achar que foi é curto demais...,...no fim ficou um gostinho de "quero mais" tamanha a excelência tida no que foi lido...,...uma estória apaixonante em todos os seus "detalhes",...de uma criatividade admirável...,...e tudo elaborado dentro de uma fluidez literária "de primeira linha"...,...parabéns! // (...vixi!..."falei" muito por esse "Todos são suspeitos..." , mas, nesse caso, a verdadeira culpada és tu...) /// Meu carinho.



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