ADEUS À INFÂNCIA

Cecilia

ADEUS À INFÂNCIA

                                                                                  

                        

Meu melhor amigo de infância foi uma menina, Fê.

Cabelos  curtinhos, magrela, atrevida, quase um moleque.   Chutava, brigava,  xingava como  os outros, enfrentava qualquer de nós, na corrida, no drible, nas disputas.

As notas de Fê eram, de longe, melhores que as nossas.   Se algum dos meninos tinha  ciúme, inveja, despeito, por Fê ombrear conosco, parava aí.   Véspera de provas  ia  a turma inteira estudar com ela, que sabia tudo e tinha os cadernos mais completos da classe.   Afinal, um pouco mais, um pouco menos, todos éramos dependentes  de Fê.

Eu era o especial, o amigo, quase irmão.   Com as figurinhas, trocávamos também confidências, sonhos e projetos.  Por muitos anos, juntos descobrimos o mundo, juntos acalentamos as imensas  ilusões e  descarregamos as enormes raivas da nossa idade. 

Nem reparei quando Fê ficou mais alta e  deixou crescerem lindos cabelos louros.  Mas quando, na camiseta apertada, apontaram uns seios redondos, escandalosos no corpinho magro,  quando a boca malcriada amaciou,  estranha no rosto miúdo, me afastei.   Não podia ser meu amigo alguém que ostentava peitos de mamilos duros,  e lábios separados por uma pontinha túmida de língua.

Fê, marota, fingia não perceber o meu enleio, o rubor no rosto, o volume indiscreto nas calças justas.    Ma, aborreci você?  O que eu fiz, o que  deixei de fazer?  Não é mais o meu amigo?   Fê cobrava as minhas fugas.   Exigente, não desistia, nem aceitava a distância entre nós.  

Dia de chuva forte, nos abrigamos os dois  num desvão estreito, onde mal caberia um.   Dona de um tremendo feeling para tirar proveito de situações,  deu-me o xeque-mate.

Agora, Ma, se você ainda for o meu amigo mais querido, o meu irmão de coração, vai me dizer, com todas as letras,  por que foge de mim.  Agora.

Assim, na cara limpa.   Era o jeito dela.   Sem escape, me abri.   Fê, é esse seu corpo, são os cabelos, a boca, os seios.  Eles me perturbam,  não me deixam pensar, não me deixam dormir, poxa!

Normal seria  Fê retrucar logo, desabrida, cheia de exclamações.  Não foi assim.   Pensativa, demorou a responder, escolhendo cada  palavra com cuidado.  

Pois é, Ma. Tenha paciência com essas coisinhas.   A gente cresce, muda, você tem que acostumar.   Acaso reclamei de sua voz, de bode rouco, de suas pernas cabeludas?  Acostumei... Mas, saiba você, estes seios a mim também incomodam,  me atrapalham, não sei bem o que fazer com eles... Olhe... 

Calma e simplesmente abriu a blusa, desvelando  as   conchas de leite e nácar.   Você é o primeiro que os vê, não os mostrei  nem à minha mãe...   nem  à minha irmã...    É segredo nosso, de amigos até a morte... Só nosso...  Fê, sempre senhora de si, de olhos muito abertos e parados, ofegava levemente.

Meu sangue, circulando veloz, concentrou-se no púbis latejante.   Não fui eu, aturdido, quem abriu o zíper do jeans.   Foi uma força antes desconhecida, o orgulho do macho, que exibiu o falo em riste.    Jamais tinha sido visto, assim, por pessoa alguma.

A chuva passou.   Mais tarde, no espelho do banheiro, encontrei  uma face nova, forte,  penugem de  buço sombreando o lábio,  pômulo de Adão avultando sob maxilares angulosos.   Rosto de homem, menino de ontem.

            Nunca mais contemplei os seios de Fê, nem ela a minha virilidade.   Aquele breve momento tornou-se  nosso segredo, tão precioso naquele tempo, que mencioná-lo já seria sacrilégio.

            Continuamos  inseparáveis, irmãos de fé, até a maioridade, quando  a vida nos distanciou para sempre.

 

  • Autor: Cecília Cosentino (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 31 de outubro de 2021 09:29
  • Categoria: Conto
  • Visualizações: 55
  • Usuários favoritos deste poema: Shmuel
Comentários +

Comentários7

  • Meno Maia Jr.

    Madame! vosso conto é algo indescritível. Forte e ao mesmo tempo sensível! parabéns!!!

    • Cecilia

      Obrigada, Meno Maia. Fui criança que ouvia histórias antes de dormir. Agora as escrevo, e fico imensamente feliz em receber retorno honroso comom o seu. abraço

    • Maximiliano Skol

      Querida Cecília, você tem o dom do suspense. Esse seu pequeno lindo conto leva duas almas, com relacionamento cândido, para num crescendo ao ápice do lúdico, depois em decrescência terminarem num espontâneo e melancólico desfecho.
      Você é uma mestra nos seus contos.
      Um beijo.

      • Cecilia

        Meu querido amigo, agradeço o tempo e atenção que me dá, o ajuse perfeito das palavras . ( Cândido cabe bem, e eu não me lembrava dela) , a análise que me traz a alegria da mensagem compreendida. Fico feliz por muito tempo. beijo

      • Elfrans Silva

        Um conto bem elaborado, independente de ser verídico ou não. Mas com certeza é a história de muitos que vivem esses dilemas conflitantes. Quando cresce ( se cresce mesmo) tudo muda na vida das pessoas. A maioridade trás consigo a responsabilidade. Então cada indivíduo responde aqui, e depois, por seus atos.
        Escreveste um conto digno de Best-sellers adorável amiga. Meu apreço e forte abraço

        • Cecilia

          Elfrans, Obrigada. O conto foi inventado, mas na minha memória há cena
          parecida, dentro de um caixote, eu e um priminho, quando tinhamos cinco anos...Fiquei feliz que você tenha lido e comentado. Abraço.

        • Claudia Casagrande

          Dona Cecília, sou sua fã de carteirinha. Sua inteligência aliada a sua arte sempre fez com que eu a admirasse, mas hoje, me encanta.
          Bjs

          • Cecilia

            Cláudia, aceito com alegria sua opinião. Quem foi aluno e, depois de décadas, ainda encontra valor no mestre, é um crítico confiável. Obrigada.
            Não fui ainda tomar e buscar o meu café porque c meu equilibrio está pouco confiável, mesmo em casa. Se tiver um tempo, venha, vou adorar. Beijo

            • Claudia Casagrande

              Dona Cecília, vou telefonar para a senhora amanhã para marcarmos. Irei com certeza.
              Beijos

            • Shmuel

              Nossa, li e reli este lindo e tênue conto. Simplesmente lindo! Parabéns Cecília, sua senilidade é incrível!
              Abraços amiga poeta!

            • Sergio Neves

              SERGIO NEVES - ...caramba!...que coisa mais bonita escreveste aqui!...um enlevo total para o meu intelecto!...e eu te agradeço por isso...,...realmente me encantei com esse teu conto/poesia - poesia/conto... // ...és verdadeiramente uma literata de primeira linha! // (...e, por coincidência das coincidências, eu acabei de postar um poeminha falando da saudade dos tempos de outrora...) /// Meu carinho.

            • Ricardo o lobo

              Parabéns pela EXCELÊNCIA !
              Uma verdadeira obra de ARTE !

              • Cecilia

                Obrigada, Ricardo, por me haver lido e opinadç tão gentilmente. Grande abraço



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