Nelson de Medeiros

HISTORIAS D!OUTRO MUNDO. III

A SINHAZINHA

 

                            Desde os tempos colegiais, quando tomei ciência pela primeira vez da história da Inconfidência Mineira, que as Minas Gerais passaram a me intrigar. Não foi a toa quando, mais tarde, ao conhecer Ouro Preto, Mariana, Tiradentes e tantas outras cidades históricas daquele Estado, que por elas me senti atraído de forma impressionante. Principalmente Ouro Preto e Mariana que parecem fazer parte de uma vida que sinto ás vezes, ter vivido naquelas plagas e naqueles tempos.

                            Estas duas cidades me parecem, outra vezes, ainda vivas e latentes dentro de meu pensamento, e, muito embora com o passar do tempo esta impressão tenha diminuído, até hoje guardo delas um carinho muito especial. Visito-as sempre que posso. Preferencialmente Ouro Preto onde sinto, ao caminhar por suas ruas estreitas olhando o casario barroco, suas mais de quinze igrejas edificadas nos séculos XVII e XVIII, uma sensação de “saudosa tristeza” que não tenho palavras para descrever com precisão. Mas, deixemos as minhas divagações e vamos a mais uma historia que me foi contada de tantas que me propus a repetir desde a primeira que escutei do meu amigo de Florença do século XVI.[1]

                            Era uma tarde de outono e o calor já se afastara desde algum tempo dando lugar àquelas brisas suaves que estes finais de dia nos proporcionam nesta época do ano.   Encontrava-me sozinho em casa sentado numa confortável poltrona que ornamentava meu escritório e muito atento na leitura de uma obra sobre a Inconfidência Mineira. Buscava me inteirar mais sobre aqueles valorosos espíritos que iniciaram nossa independência de Portugal, quando ouvi um sussurro muito leve e bem suave: “- Podes me ouvir caro amigo?” Aquela voz feminina me fez tremer. A sensação estranha daquela dita “saudosa tristeza” tomou conta de meu ser e, pensando onde já a ouvira  demorei alguns segundos para dar conta de onde eu estava.

                            Sem me virar, respondi: - Sim, com toda a nitidez que me for possível.

                            “-Pois então escuta e reproduz o que puderes”- respondeu-me.

                            Pude, então, observar, não nitidamente, mas o bastante para fixar um pouco na mente a sua indumentária, pois que, deveras, me chamou a atenção. Trajava um luxuoso vestido verde bordado em vermelho e amarelo com botões em grande quantidade os quais não pude constatar se eram enfeites ou se seguravam a veste; calçava meias brancas bordadas e sapatos forrados de puro cetim enfeitados, também por pedras verdes;   em uma das mãos carregava uma espécie de bolsinha com alças de ouro, e, na outra um vistoso leque de marfim. Pulseiras e anéis, também de ouro, com as mesmas pedras verdes lhe enfeitavam os braços e as mãos; brincos de ouro com uma pedrinha verde em cada - esmeraldas, certamente- adornavam seu rosto; trazia os cabelos presos por uma espécie de coque que lhe davam um aspecto mais velho do que parecia  realmente. Mas, tinha uma aparência triste, o que não pude deixar de notar, também.

                             Disse-me, então, que vivera sua última vida terrena na Província das Minas Gerais, mais precisamente em Vila Rica no final do século XVIII.  Chamava-se Maria Berenice e fora casada com um grande proprietário de lavras.

                            “Na verdade – me confiou -Não posso dizer que vivi, pois que apenas vi a vida passar sem fazer qualquer esforço para entender o porquê dela. “Não atinava com mais nada que não fosse diversão para passar o tempo; rica, e,  sem compromissos sérios com qualquer coisa, tentava fugir ao tédio, oriundo da minha preguiça, através dos saraus que freqüentava  juntamente com tantas iguais a mim”.

                             Ela interrompia constantemente a narrativa e me pareceu, embora o esforço para fazer-se entender, que às vezes se perdia demonstrando certa dificuldade de concatenar as idéias. Parava como se estivesse cansada, mas logo em seguida se recompunha, como se alguém, invisível para mim, lhe acompanhasse e lhe advertisse de seu propósito.

                            Retomou a narrativa:

                            “Não raro fazia-se musica em casa. Algumas pessoas da família, mais precisamente minha cunhada, sabia tocar divinamente o piano. Muitos da família sabiam manejar algum instrumento musical; cantavam alguns. Formavam-se trios, quartetos, quintetos, etc. que ilustravam os saraus elegantes ou saíam os músicos pelas ruas em noites enluaradas a fazer serenatas românticas... Mas eu jamais me interessei por nada disso. Era cansativo e apenas me deliciava em ouvi-los”.

                            “Achava-me generosa, pois que nunca maltratara uma mucama, nem mesmo um escravo de terreiro, embora fossem indiferentes para mim. Não gostava muito da forma como eram tratados, mas nada fazia para ajudar. Era muito devota, pois que participava das missas na Igreja Matriz de N.S. do Pilar e meu marido, além de pertencer àquela irmandade, era pródigo em colaborar com seu dinheiro farto para sua manutenção”.

                            “Positivamente não sabia e nem me interessava por seus negócios, muito menos por seus amigos políticos, mesmo quando convidada a participar de suas conversas. Eu era alheia ao mundo que não fosse o dominado pela casa e as diversões que nela desfrutava. Ignorava completamente que houvesse Pátria, Império, Literatura”.

                            A benção da vida, na terra, não nos foi concedida para simplesmente vivê-la. Ela é manancial que serve ao nosso progresso moral e intelectual, a fim de que possamos progredir na escala para o alto sempre rumo norte.

                            Viver para aprender, aprender para ensinar, ensinar para conhecer a finalidade da existência. Estudo, conhecimento, prática do bem, tudo é força para a alma ir mais além na caminhada. Se guardarmos a benção só para nós, apenas existimos e somente utilidade terá para nosso egoísmo. Entretanto, se prestamos nossa colaboração ao próximo através do serviço que podemos oferecer, as alegrias que lhes dermos serão automaticamente adicionadas em crédito ao nosso espírito.

                            Seguiu dizendo:

                            “Desencarnei aos 38 anos de idade”-  continuou: “ Mas, não me dei conta disto e continuei na cama sempre à espera da mucama com os  remédios, de meu marido para me dizer boa noite, das amigas dos saraus, do médico da família... Mas, foi curioso quando me dei conta de que eles não apareciam mais. Então resolvi sair da lassidão e me levantei. Não sentia mais o peito pesado pelo pouco ar que respirava, nem as dores. Na verdade não sentia nada, mas também não conseguia sair da casa. As coisas, porém, começaram a me desagradar já que o insosso  da vida tediosa começou a me fazer mal, e, não poucas vezes entrei em desespero chamando pelos criados. Permaneci assim por muito tempo...”

                            A vida é atividade, é trabalho, progresso.  Maria Berenice, na verdade, encontrara,  no além, a continuação da  vida que  vivera na terra. Indolente e fútil nunca tentara ser útil embora as oportunidades para isto não houvessem faltado. Sua passagem pela terra de quase nada servira para sua evolução espiritual. Dedicara-se unicamente às coisas que lhe faziam passar o tempo; frívola, nem os deveres da família lhe despertaram qualquer sentimento mais elevado. Seu mundo fora vazio e por isso depois de deixá-lo seu coração continuara vazio.

                            Um dia - voltou a me falar: cansada daquela repetição que já era aterradora lembrei-me da Igreja Matriz de N.S. do Pilar. Quis ardentemente estar lá para fazer minhas orações costumeiras e sem perceber direito roguei a Deus com tamanha fé e humildade que num repente me vi ajoelhada em frente ao Altar a pedir ajuda, pois que me entendia totalmente desorientada”.

                            Fez breve pausa e continuou: “Orei ardentemente e foi derramando lágrimas que vi surgir à minha frente a figura iluminada de minha mãe”.

                            “- Que felicidade imensa! Atirei-me em seus braços como se fora, ainda, a pequenina que sempre procurava aquele abraço nas horas mais aflitivas da infância. Adormeci e despertei a seu lado, em outra dimensão. Com o tempo tomei ciência de tudo que deixara de fazer e que a fortuna que fora posta à minha disposição me seria a maior das aliadas. Entendi que não basta apenas não fazer o mal; há que fazer todo o bem que se possa em beneficio do semelhante”.           

                            O poder da prece é inimaginável para quem pensa que, sendo Deus conhecedor de todos os nosso problemas e necessidades, ela seria inútil. A Lei que rege a vida é imutável, mas Ele nos deu o livre arbítrio para usá-lo; se assim não fosse e nos concedesse tudo sem esforço, nenhum mérito teríamos nas vitorias e nem culpa alguma nas derrocadas do caminho...

                           O conhecimento e a fé raciocinada nos faz entender a ação da prece na comunhão de nossos pensamentos com os seres mais evoluídos, estejamos em qualquer dos lados da vida.

                            Finalizando me afirmou: “Voltarei, muito em breve. Não terei a fortuna que já possui, mas vou levando muita confiança em Deus, e na ajuda dos companheiros que aqui me fizeram entender o valor do trabalho constante a beneficio de todos. Estaremos juntamente com poucas amigas que viveram mais ou menos os mesmos desatinos da inércia. Minha mãe já se encontra entre os encarnados e será o esteio que nos precisamos para nos amparar moralmente e espiritualmente. Seremos responsáveis por uma Casa Beneficente e, muito embora, com dificuldades financeiras para sua manutenção nos propomos a difundir o bem comun e ajudar a tantos que, como nós, fazem de suas vidas o completo nada. Passe adiante a experiência dolorosa que tive e, certamente já terei começado a ser útil”.

                            O tempo aqui é curto e por isso devemos aproveitá-lo o máximo para aprender, ensinar e progredir no que for possível para nossa elevação moral e intelectual.

Nelson De Medeiros               

 

[1] Histórias d!Outro Mundo- I ( “Aconteceu em Florença”)

 

  • Autor: Nelson de Medeiros (Offline Offline)
  • Publicado: 9 de Agosto de 2021 09:58
  • Comentário do autor sobre o poema: Do livro HISTÓRIAS D!OUTRO MUNDO que compilou anotações de várias épocas e que ficaram guardadas por muito tempo. Se é verdade ou ficção cabe ao leitor julgar pois que interpretação é livre.
  • Categoria: Conto
  • Visualizações: 29

Comentários3

  • Hébron

    Caro amigo poeta, um conto rico e muito bem elaborado e inteligente. Muito bom, Nelson!
    Abraço

    • Nelson de Medeiros

      Bom dia amigo poeta.
      Obrigado caro poeta.
      1 ab

    • Edla Marinho

      Perdoe - me o atrevimento em comentar (nem mesmo comentando, só indagando) esse seu conto. Assim como os anteriores, este me traz tantos "quês" e "porquês", que me deixam como que meio sem saber o que pensar, pois me parece tão crível, descrito assim, com tantos detalhes e convicção. Ficam minhas indagações e não interpretação.

      • Nelson de Medeiros

        Bom dia poeta.
        Pois é... Só te digo que " veja quem tem olhos de ver e ouça quem tem ouvidos para escutar", lembrando sempre que " eexistem mais mistérios entre o céu e a terra do que pode sonhar nossa vâ filosofia".
        1 ab

      • Cecilia

        Nelson, gostei de sua escrita fluente, gostoa de ller, interessante, inventiva. Grande contador de histórias!

        • Nelson de Medeiros

          Bom dia poeta.
          Pois é, poetiza. Já disse um humorista que " quem não tem dinheiro conta histórias..."
          Mas, e se a realidade se misturar nelas:?
          1 ab



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