Olhares
Quando Maria tinha 13 anos, a família mudou-se para rua larga e clara, muito melhor que a viela triste de onde vieram.
Jantava-se antes das seis, as senhoras traziam cadeiras para conversar na calçada, os adolescentes flertavam, as crianças brincavam, a rua era das pessoas, raramente passava um carro. Não havia indústria automobilística nacional. Uma delícia.
Delicia maior era o vizinho da esquina, José, por quem Maria se apaixonou perdidamente. Não se namorava antes dos quinze, dezesseis. As famílias cuidavam, não existiam anticoncepcionais. Então foram anos de longos olhares, e longuíssima espera.
Em horas certas, com seu andar pausado, indo ao colégio, ou ao rio, José passava em frente à janela de Maria, que estudava em sua escrivaninha. E se olhavam por mais de meia quadra.
Em horas incertas, indo ao mercado ou à casa da avó, Maria passava embaixo da janela de José, que sempre a percebia. Não se olhavam tanto, mocinha caminhava voltada para a frente.
Nos fins de semana os jovens faziam o footing na praça da Matriz. Grupos de rapazes num sentido, grupos de moças no outro. A cada volta se cruzavam duas vezes, e se olhavam... olhavam...
Os olhos de Maria eram vivos e buliçosos, a face sorridente, a pontinha da língua se mostrando como se estivesse sempre a ponto de dizer alguma coisa. José era sério, calado, um pouco triste e o brilho líquido nos grandes olhos claros sugeria que talvez lhe fosse fácil chorar.
Quando finalmente namoraram, toda a cidade conhecia-lhes a paixão. Mais anos de amor paciente, não se casava antes da formatura. Juras, promessas, cartas, alguns beijos, raros abraços, era severa a moral dos anos cinquenta.
Um dia, depois de anos de longos olhares e breves carinhos, o amor acabou, como tudo se acaba nesta vida. Separaram seus caminhos em paz, ditas todas as palavras e as calmas despedidas. Maria casou-se com outro José, foi feliz, comemorou bodas de ouro, enviuvou. José escolheu outra Maria, ainda é casado e feliz, aos oitenta e tantos.
Cidades distantes, a geografia não ajudou. O acaso muito menos, ao longo de sessenta anos nunca se avistaram. A vida prega peças. De repente, em um velório, se esbarraram entre velas e flores. O ambiente fúnebre dissolveu-se com os olhares fundidos através dos óculos de grau. Também se dissolveram as rugas e as adiposidades, os anos e seus dissabores.
Em silêncio se olharam como antigamente, e por encanto aflorou o eterno carinho subjacente aos amores da juventude. Na tranquila segurança da velhice, sentaram-se num desvão discreto e gastaram a vigília comentando as lições do passado, as alegrias do presente, as graças dos netos.
Tão absorvida na conversa, Maria sobressaltou-se quando alguém lhe pousou a mão no ombro.
Vamos, mamãe, o cortejo está se formando.
Ergueu-se devagar, um pouco confusa. Na saída, ao assinar a lista de presença, a caneta tremeu-lhe na mão.
Meu filho, é José a pessoa a quem viemos sepultar?
Sim, Mamãe, você já sabia, foi quem me contou!
É verdade, mas não entendo... parecia tão real... Conversei com José, desde que chegamos até o momento em que você me chamou. E agora... Não posso entender!
O filho sorria, cheio da paciência tolerante com que se trata os idosos.
Pois eu entendo muito bem, Mamãe. Você sonhou! Cochilava, até se assustou quando a toquei.
No caminho de casa, acomodada no carro, Maria pensava como os jovens creem saber tudo, carregam pétreas certezas, enquanto os idosos consideram várias possibilidades, e confortáveis dúvidas. Por exemplo, os velhos, acreditamos possível que os mundos, assim como os tempos, às vezes se entrelacem... Que falecidos recentes perambulem um pouco entre nós, antes de partir...
Ao deitar-se, Maria agradeceu o dia vivido, e o doce sonho daquela tarde. Tão feliz, nem sentiu a parada cardíaca que a levou durante a noite.
A passagem, repentina mas tranquila, consolou os parentes. Também foi consolador Maria haver partido discretamente, tão logo começou a caducar.
- Autor: Cecília Cosentino (Pseudónimo ( Offline)
- Publicado: 1 de março de 2021 15:03
- Categoria: Não classificado
- Visualizações: 33
- Usuários favoritos deste poema: Shmuel, Helio Valim
Comentários5
Nossa que texto lindo e repleto de ternura.
Parabéns, Cecilia Consentino. Adorei, vou favoritar e reler esse precioso texto.
Abraços!
Shmuel, que emoção marcar um texto meu como favorito! Obrigada!!!
Emoção e uma honra, a minha estar vivo, com boa visão e poder ainda ser agraciado com um pérola de sua autoria.
Grande poeta!
Tenho a impressão que Maria e José ainda conversam...
Que texto maravilhoso!
beijos, dona Cecília
Obrigada, Cláudia. Vocês, meus amigos queridos, estão me acarinhando demais. Obrigada!
Querida Cecilia, excelente conto ainda dentro do fantástico. Tornou-se perita no tema. Diz Huberto Rohden que não devemos mostrar tristeza num velório, a alma continua presente por algumas horas
Suspeitaram caduquice...
Parabéns.
Maximiliano, meu querido amigo. Adoro suas análises acuradas. Obrigada, grande abraço
Lindo conto, romântico, espirituoso, transcendental. Cecília seu texto é envolvente, denso e bem humorado e sempre apresenta um final surpreendente. Parabéns, um grande abraço.
Hélio, como agradecer a carinhosa análise com a qual me presenteou? Quero acreditar! Abraço carinhoso e muito grato.
Belíssimo texto D. Cecília
Tão envolvente e um tema triste como a morte, mas com uma réstia de esperança... Que ainda há muito mais para lá " dela"
Amei
Beijinhos e um abraço.
Obrigada, Helena, por me haver lido e opinado com tanta gentileza. Creio que há mais...como não creria, na minha idade? Como viver, sem uma réstia de esperança? Beijo carinhoso.
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