Agosto, 13

Cecilia

AGOSTO, 13

                                A                                                  

            Tião, você não é mais amigo do Quim?

            Pois é...  Aconteceu... Dizem que sou ignorante, supersticioso...  Não é  bem assim.   Tem coisas que respeito.    Cismo com bicho preto, nunca tive.   Também  com o número treze, e não facilito no mês de agosto.  Detesto coruja, urutau, passarinho que pia de noite.  Fujo do mal e me protejo.    Rezo pra tudo que é santo,  uso cruz e figa da Guiné, água benta e mandinga de Tia Inácia.   A gente nunca sabe... Tem que respeitar...

            Bem que não queria aceitar o convite do Quim.   Mas como dizer assim para ele, na lata:  não vou porque  é sexta-feira,  13 de agosto, ano bissexto!   O Quim iria tirar-me o pelo, gozar com  a  minha cara,  por mais de ano.

            Além disso,  Quim era vizinho de cerca, amigo dos  bancos da escola, das pescarias, filho da  minha madrinha, quase parente.   Eu não negava nada para o Quim.  Fui.

            Caprichoso por demais, o Quim.   Tudo dele sempre perfeito, até os mínimos detalhes.   O jardim, mais bem cuidado que a praça da Matriz.  A  casa cheirosa, a roupa nos trinques,  gado e  tropa de qualidade.   Até  os filhos pareciam mais sadios e educados que os filhos dos outros.   E a esposa, então?  Boniteza chegou ali e parou!

            Ele me chamou para exibir a ninhada das  novas porcas, de raça.  Sem faltar o respeito com as freiras, o chiqueiro do Quim  era mais desinfetado que a enfermaria da Santa Casa.

            Cada  fêmea e seus filhotes, cada lote  de engorda, cada cachaço,  no  seu  cercado, tudo no  cimentado e bem lavado.    Os animais marcados, com  um  furo  bem  feito, no lugar  certinho da  orelha esquerda.   E que beleza aquela leitoada cor de rosa,  gordinhos e limpinhos como bebês!   

             Fiquei para jantar, comida de  Donana  não  é  coisa  que  se  despreze,    Tomamos pinga envelhecida, com torresminhos, jantamos  frango  de molho  pardo  com angu , arrematamos com goiabada  e requeijão, tudo feito em casa.   Depois do café, moído na hora,  o Quim trouxe um fumo especial, do Bairrinho.   Enrolamos nosso cigarrinho de palha, e pitamos um bom tempo, jogando conversa fora.   Foi uma noite muito boa mesmo.

            Despedi, agradeci, já estava tarde,  eram vinte quilômetros de estradinha ruim, de uma sede na outra.   Não me agrada confessar, mas fico receoso de viajar sozinho,  no escuro.  

            Ainda mais nessas estradas vicinais onde passa pouca gente de dia, e ninguém, ninguém mesmo,  de noite.  Lua nova, um breu só.   Aquele vento frio de agosto zunindo no arvoredo.  De vez em quando um pio agourento, de arrepiar...  Credo em cruz!   Noite de assombração, de lobisomem, de mula sem cabeça...

            Na  metade  do caminho, longe da casa do Quim, longe da minha casa,  a camionete deu um tranco.   Desci para ver,  me correu   um  arrepio gelado do calcanhar até a nuca.   Os ponteiros do relógio acabavam de se juntar no número doze, e o farol alumiava     um porquinho  meia          ceva, mortinho.      Era meia noite em ponto, sexta feira, 13 de  agosto,  ano bissexto, e eu atropelo um capadete mais preto que   saci!  

            Comecei, gaguejando, a conversar comigo mesmo.  

            Vou jogar o tição no mato, ir-me embora!

            Mas esse  porco dá bem meia lata de gordura, sem pensar nos pernis, nas costelinhas...

            Quem vai  comer tal bicho, posse do Cão?

            Reparando melhor,  na orelha esquerda tem marca redondinha.   Pois é do Quim... Tenho que acertar com ele, amanhã.  

            Sei, não...Lá só tem porco rosado..., Não tem outra fazenda, nem sítio, nem  morador por  aqui, a sede do Quim está longe, o animal deve ser  mesmo do Coisa Ruim,  furo na orelha é tapeação do Tinhoso...

            Eu suava em bicas  de medo, mas ao mesmo tempo tiritava como se geasse.  Queria era ir para casa, lugar claro e quente.  Decidi.

            Pode ser do Belzebu, pode ser do Quim, pode ser bicho alongado, de qualquer um.   Na verdade,  não sei de quem é.   Ninguém passou por aqui esta noite, ninguém viu o atropelamento, ninguém sabe de nada.   Não  procurei, foi sem eu querer, me apareceu na frente, se enfiou debaixo da roda.   Comer, não, credo,  tenho cisma.   Mas, na  surdina,  aproveito  o bicho no rango da peonada.

            Joguei o porquinho na carroceria, fiz o sinal da cruz e abalei para casa.   Na horinha mesmo que abri a porta o telefone tocou.   Parecia alguém tocaiando minha chegada, para ligar...  Levei susto, atendi tremendo.   Altas horas, só pode ser notícia ruim...

            Pois era o Quim, com aquela  risadinha gozadora dele...

            Ha, ha, ha... ha, ha, ha... Tião, não deixe para amanhã, sangre  o capadete, agora mesmo, antes de dormir , senão a carne vai estragar...ha, ha, ha...ha, ha,ha...

            Como    poderia saber do acidente com o capadete?   Como  poderia ligar certinho na hora que cheguei?   Bem que eu já estava cismado com a sorte exagerada do Quim!   Tudo para ele dá mais certo que para os outros... A vida, para o Quim, corre fácil por demais!   Aí tem pé de coelho...  Só pode ser  tendo parte com o capeta!  Esconjuro! 

            Foi aí que perdi a amizade com o Quim.

 

 

 

 

  • Autor: Cecília Cosentino (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 1 de fevereiro de 2021 06:59
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 18
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Comentários4

  • Maximiliano Skol

    Bom dia, querida Cecilia.
    Merece ser revisitada.
    Um beijo.

    • Cecilia

      Sou terrivel nas modernidades. Apaguei sem querer...Fiz uma bagunça geral! Abraço

    • Helio Valim

      Cecília seu conto é muito bem estruturado! Aguça a curiosidade e a mantém até o final. Parabéns, merece ser publicado! "A gente nunca sabe... Tem que respeitar..." Muito bom!

      • Cecilia

        Obrigada, Hélio. Vou contar o segrêdo: fui criada ouvindo histórias , lendas. A criançada, no chão, em roda das tias, da mãe, da avó...Que saudade! Abraço. Esse é um dos causos do meu pai, que temperei um pouco.

        • Helio Valim

          Parabéns Cecília. Essas histórias (causos) devem ser preservados em livro, para o deleite de outras (todas) gerações. Um abraço.

        • Claudia Casagrande

          Adoro como a senhora conta seus contos. Tão gostoso de ler...
          Respeito nunca é demais mesmo... sempre é melhor entrar com o pé direito....rs... nunca se sabe...
          beijos

          • Cecilia

            Obrigada, Cláudia. Esse modo de falar, roubei de meu primo Paulinho, grande frequentador dos idos de Olimpia...Abraço.

          • Ernane Bernardo

            Parabéns poetisa Cecília, mais um belo conto, adorei. Bom dia, abraços.



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