HISTORIAS D!OUTRO MUNDO. II

Nelson de Medeiros

O FAZENDEIRO

                                                               A chuva descia torrencialmente alagando grande porção da estrada que eu percorria com destino a uma cidade do interior de Minas Gerais.  Aos poucos fui notando que alguns carros paravam no acostamento; outros seguiam devagar, como eu, mas a cada minuto a coisa piorava. Não havia relâmpagos nem trovões, somente a água  que caia em profusão. Estava em dúvida se continuava a viagem ou se fazia como os outros quando, com certo alivio, vi uma placa à beira da estrada: “Leopoldina 5 km”.

                                                               Não pensei duas vezes e me dirigi àquela cidade embora estivesse, ainda, bem longe do meu destino. Passava das seis horas da tarde e a noite se aproximava prometendo mais chuva. Com receio de seguir caminho acabei por buscar um hotel e nele me alojei para seguir viagem pela manhã, bem cedo.

                                                               Devidamente acomodado em quarto muito limpo e bastante acolhedor passei a reler os apontamentos que seriam usados no meu trabalho em chegando à cidade de grande porte para onde me dirigia.

                                                               Estava absorto na leitura e quase não me dei conta de que ao meu lado um senhor me observava atentamente.

                                                               Surpreso e um pouco assustado fixei-o com mais apuro da visão e pude constatar que ele, embora bem visível aos meus olhos, parecia como que meio translúcido, como se fosse feito de uma névoa mais espessa. Lembrei-me, então, do amigo que me contava historias na infância e que há poucos dias me contara a sua historia vivida na cidade de Florença no século XVI. Não era ele, mas dissera-me que outros viriam me contar suas historias. Falara a verdade! – pensei – e logo me acalmei. Afinal, o fenômeno não era novo para mim.

                                                               Ele trajava um costume de lã inglesa bem escura, colarinho duro de ponta quebrada onde pontificava uma gravata entrelaçada em cores sóbrias; os sapatos também eram escuros e comedidos. Lembrava um afinamento com a pesada indumentária oitocentista da Grã-Bretanha, mesmo porque o clima da região, muito frio, favorecia isto.

                                                               Porém interrompeu-me a análise que lhe fazia, e disse-me se chamar Antonio Martins da Silva – o Coronel Silva – e vivera naquela região na primeira metade do século XIX. Fora rico fazendeiro na região Matense das Minas Gerais, mais precisamente em sua zona sul que abrangia Juiz de Fora, Mar de Espanha e Leopoldina, onde me encontrava.  E, sem qualquer cerimônia falou: “-Presta atenção, pois vou lhe contar a minha história toda”.

                                                               E narrou-me o seguinte:                                                            

                                                               “ Naquela época esta região mineira tinha como principal economia seus cafezais que se perdiam de vista no horizonte. A Zona da Mata era, então, a principal produtora e exportadora da rubiácea do país”.

                                                               “Eu era  um fazendeiro igual a tantos outros que lá viviam.No começo eram só os cafezais e os escravos que deles cuidavam. Ainda não era rico, embora tivesse o bastante para sustentar minha família. Naquele tempo se media a riqueza de uma Província por sua capacidade econômica de importar mancípios[1], como se dizia. Dos habitantes da região seguramente 40% eram escravos, e, eu possuía cerca de 20 deles, entre homens e mulheres”.

                                                              “Trabalhavam duro, de 15 a 18 horas por dia,  cada um por dois, pois que a minha lavoura cafeeira não podia ser considerada pequena e, no mínimo necessitaria de, pelo menos, 40 trabalhadores para que o trabalho se humanizasse. Partiam para a lida antes do nascer do sol, por volta das 9 e 10 horas almoçavam, descansavam meia hora e retomavam a labuta. Mas, escravos eram caros e eu não possuía, ainda, condições para comprá-los, e, além do que, pouco me importava se trabalhavam muito ou não. Pensava, também, como muitos,  que eu era dono deles e eles não eram considerados gente. Haviam nascido, acreditava, para o trabalho na lavoura. Na verdade eu me julgava até bom, pois lhes dava alimentação e uma senzala limpa para dormir. Não os maltratava, desde que não desobedecessem nenhuma ordem ou dessem qualquer prejuízo. Nesse caso, o tronco e o chicote eram naturalmente acionados”.

                                                                               “Entretanto, com a vinda da família real em 1808 para o Rio de Janeiro tudo ficou diferente, tudo começou a crescer no Brasil.  A chegada de D. João VI, e a abertura do porto proporcionou , por lá, um grande desembarque de escravos africanos. Com isso a Zona da Mata tornou-se  importantíssima no abastecimento para a então recém sede da Coroa Lusitana, aumentando consideravelmente com a abertura do Caminho Novo que ligava a Zona Matense ao Rio de Janeiro”. [2]

                                                                              “ O tráfico de escravos já era, então, uma atividade das mais lucrativas e rentáveis e, sendo  Minas Gerais a maior Província escravista do Pais muitos iniciaram este comercio clandestino que enriqueceu milhares, facilitado pela nova rota ”                                    

                                                               Parou por um instante, como a se recordação de tudo lhe fosse penosa.  Notava, vez por outra, uma ruga a franzir-lhe a testa dando ao seu rosto uma aparência triste, mas sem desespero. Retomando, porém, o controle da situação, continuou:

                                                                “ Como disse, não era pobre, mas a oportunidade que surgira, os amigos entusiastas que me cercavam, aguçaram minha cobiça latente n!alma e fizeram com que eu desejasse mais e mais. Mais escravos, mais dinheiro. Não que deva a eles a minha queda. Absolutamente. Prevalece sempre, para nós, o livre arbítrio que nos foi dado  para decidir o caminho a seguir”.

                                                               Na luta entre as forças do bem e as forças do mal, o mundo invisível que nos cerca fornece, sempre, os mais variados estímulos e os mais consideráveis elementos para atrair, fortalecer e fazer com que escolhamos sempre o melhor.

                                                               Prosseguiu firme: “ Eu logo admiti a idéia de ficar muito rico, e se  já me achava -e de fato era -poderoso na região, imaginei o que não lograria conseguir com  mais dinheiro.   

                                                              Poder. Vã ilusão. Aqueles que se julgam poderosos mal sabem que são na verdade dominados por outro poder, o poder das entidades perversas que controlam e absorvem suas forças energéticas nas mais simples decisões para usá-los em suas trevosas sintonias.         

                                                               Deu um longo suspiro, e, continuou a narrativa: “ Em pouco tempo estava familiarizado com o tráfico de escravos, poderoso e riquíssimo. Meu único filho foi estudar na França, pois que dinheiro para isto não faltava.Queria ser médico e por lá se formou. Cheguei a ter oitenta escravos quando o comum era ter de três  a dez. Quem possuía até quarenta já podia ser considerado rico, então, imagine eu com oitenta.  Tudo fruto do tráfico ilegal , de negociatas com  outros fazendeiros e com latifundiários de outras  províncias, notadamente do Rio de Janeiro”.         

                                                               “Entretanto não tinha paz. O pavor de perder o que havia juntado se tornou obsessão, uma doença incurável que eu não percebia. Vivia para vigiar meu dinheiro e o medo de perdê-lo para qualquer outro me tomou a alma de assalto”.

                                                               A  síndrome do medo de perder é uma doença . É o ciúme doentio. O doente tem  a constante sensação de incapacidade e inadequação porque seus parâmetros , em geral são estabelecidos a partir da atitude de outros  e não dele mesmo.                                 

                                                               Atento, reparei, então,  que  lágrimas desceram-lhe dos olhos, e com a voz embargada pela emoção, com muita dificuldade me contou que depois de conseguir tanta riqueza a desconfiança se apoderara de seu espírito. Tornara-se irascível, introspectivo,  todos à sua volta queriam seu dinheiro, pensava. Quase não dormia  com receio de ser roubado. Então, teve a idéia de construir um grande paiol com um fundo falso coberto de terra batida que serviria de “cofre inexpugnável” para esconder sua fortuna.

                                                                “ Foi então- prosseguiu - que a acolhi a infeliz idéia! Chamei Tião Branco, escravo mulato de minha inteira confiança – meu fiel acompanhante de  todas as horas - que trabalhando sem descanso construiu a  fortaleza, a qual,  só nos  dois sabíamos como abrir, pois que a entrada somente era possível,  aparentemente, por fora”.

                                                               Estacou, de repente, elevou a cabeça para o alto parecendo pedir socorro, força, coragem para terminar seu relato, e, logo depois arrematou:

                                                               -“Há! remorso atroz! O medo de ter meu tesouro descoberto foi mais forte que a noção da lealdade que o infeliz escravo nutria por mim. Enceguecido pela usura, desvairado pelo brilho do ouro lhe tirei a vida, premeditamente, de maneira fria e cruel. Cravei-lhe no coração a minha adaga...”

                                                               E caiu em pranto convulsivo.    

                                                               Se o homicida frio e cruel soubesse o que a Vida lhe cobrará  na reparação de  seu ato impensado preferiria mil vezes ter o braço assassino decepado antes de desferir o golpe contra seu semelhante, pois que a Lei Natural,[3] que rege toda a vida, não necessita de nenhum juiz para ser executada; ela é auto executável por nossa própria consciência.

                                                               Recompondo-se continuou : Depois de uma luta insana contra a febre amarela desencarnei”- retomou a palavra- “sem me dar conta de qualquer remorso, pois que achava ter feito a única coisa que poderia para salvaguardar o que amealhara durante toda a vida para o meu conforto e de todos os meus. Mas, ainda tive a oportunidade de dizer ao filho mais velho o lugar onde entesourara todos os produtos de meus erros”.

                                                               Fora este o seu último momento de lucidez na sua malograda passagem pelo planeta.

                                                               "Em dado momento que não posso precisar, recobrei, de repente, a consciência”- continuou como se estivesse amparado por alguma força desconhecida. “ Estava dentro do paiol que rebrilhava em ouro. Não sei quanto tempo ali fiquei observando e guardando aquela raridade. Não me dava conta de nada.Não me julgava morto mas, quando tentei sair para voltar para o meu lar não consegui. Não achava a saída. Era como um pesadelo, pois que sabia onde estava a abertura e não a encontrava. Esbravejando lembrei-me de Tião Branco e exigi-lhe a presença para me tirar daquele buraco dourado”.

                                                               “Foi então que o vi à minha frente. Postado à saída da tulha me olhava com ódio incomensurável. Em seu peito a adaga fazia jorrar uma corrente de sangue continua. Lembrei-me de tudo... O horror se apoderou de mim...”

                                                               “A ele logo se juntaram outros negros a quem maltratara de forma cruel e desumana e compreendi que não mais pertencia ao mundo material. Obrigavam- me a lustrar o ouro continuamente e revezavam-se no chicote quando eu, cansado, com sede e faminto, parava de esfregar  o que ali eu estocara”.

                                                               O espírito encontra depois da morte de seu corpo, o lugar e o desejo de sua preferência quando ainda encarnado. Nosso pensamento, nossa consciência, nosso eu é que materializa nossos atos do outro lado, onde a vida continua da forma que a vivemos aqui.

                                                               “Um dia – não sei depois de quantos – lembrei-me de minha infância, do catecismo, do padre jesuíta que me falava das penas do inferno. Olhei para os meus verdugos e num segundo de remorso e arrependimento sinceros, pedi-lhes, humildemente, perdão”. E, contrito,  roguei a Deus uma prece”.

                                                               Ah! O poder da prece sincera. Quantos de nós não sabemos de sua eficácia. Quantos desconhecemos  que ela é o único caminho que nos conecta com a Divindade. A prece é canal de comunicação direta com os planos mais altos do Universo.

                                                               “Num átimo” retornou à narrativa – uma luz suave se aproximou de mim, e, estupefato reconheci , estendendo-me as mãos,  meu filho, já de cabelos brancos e coberto de serenidade que, depois da minha morte -fiquei sabendo - usara toda a fortuna que eu amealhara para fazer o bem, distribuindo bondade e benesses para os mais deserdados do mundo”.

                                                               Finalizando disse-me que fora conduzido a um local de tratamento onde permanece ainda e aprende muita coisa com respeito à vida eterna. Tinha vontade imensa de voltar para reparar todo o mal que fizera e esperava ansioso e com muita fé uma nova oportunidade de retornar ao cenário do mundo e progredir para alcançar as estâncias de luz que vislumbrara, de longe, no mundo espiritual. Que eu contasse a sua historia. Seria sempre possível  que alguém a lesse, e, quem sabe ela lhe fosse útil de alguma maneira.

Nelson De Medeiros.

 

                                                              

                                                              

 

[1] O mesmo que escravo .  N.A.

[2] Estrada que ligava Minas Gerais ao Rio de Janeiro. Estrada Real. N.A.

[3]  Lei Universal, Lei de Causa e Efeito , Lei de Deus. N.A.

  • Autor: Nelson de Medeiros (Offline Offline)
  • Publicado: 7 de setembro de 2020 00:28
  • Comentário do autor sobre o poema: Uma narrativa pode ser verdadeira ou não. Depende de quem lê e no que crê.
  • Categoria: Surrealista
  • Visualizações: 35
Comentários +

Comentários2

  • Maria dorta

    Lindo e impressionante relato,com toque de espiritismo e no fazer aqui o mal,com mal se paga,em vida ou desencarnado. Magistral,Mestre Nelson!

  • Edla Marinho

    Deve ter o conto número 1, né?
    Deve ser interessante. Acredito mesmo que nossas ações tem reações, é a lei do retorno.
    Boa semana, meu abraço!



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