Nós, a úlcera da espécie

Anna Gonçalves

Da mesma carne primordial, forjados.
Do mesmo osso, carne, pele, membros e sal, fomos feitos.
Porém, no sangue carregamos o arquivo antigo,
herdamos o mesmo útero, onde cada embrião foi implantado,
sendo um só lugar, um só abrigo.
Mas no batimento inicial, já pulsa o contra-argumento.

Antes da fala, surge o grito bruto e o olhar cego,
O primeiro "não" ao seio, o voto de desapego.
Como Adão e Eva e autonomia moral.
Foi o pontapé inicial, o primeiro movimento,
A costura frágil de um pacto íntimo.

O "Eu" que nasce ao se ver e identificar no espelho alheio,
Vê no outro um estranho, um desejo de ser mais sem nenhum receio...

Criamos divisões, como propriedades em metros quadrados,
erguemos muros de distinção,
como lotes a medir, a cercar a nossa condição;
Esta pele, aquela crença, meu nome, a tua nação.
                                   [ E que Deus seja louvado, depois lhe darei a sua bênção]
É a ferida narcísica da humanidade,
buscar no espelho quebrado uma falsa unidade.

E para quê esta sede de hierarquia?
Este muro tolo que nos aprisiona dia a dia,
que nos faz guerrear contra o irmão de sangue, carne, ossos e veias,
e trair a nós mesmos, numa sádica e infinda seita?

Poderíamos ser mais.
Poderíamos ser um corpo, múltiplo e em paz.
Desfazer a gênese do contra, o mito da separação,
e lembrar, no osso e na carne, nossa única, extensa condição.

  • Autor: Anna Gonçalves (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 15 de novembro de 2025 00:42
  • Categoria: Reflexão
  • Visualizações: 5
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