A música chega como aquele amigo inconveniente:
não pede licença,
não limpa os pés,
troca os quadros de lugar
e ainda me oferece um drink com guarda-chuvinha,
às 10 da manhã.
Pois foi assim hoje —
no meio da minha crise existencial número 537,
com a xícara fria na mão e o cabelo em greve,
ela entrou.
Desafinada, debochada,
com um tamborim onde antes morava meu silêncio.
Tentei ignorar.
Juro.
Mas ela tocou no ombro da minha rotina
e sussurrou:
"Você já pensou que talvez o sentido da vida
seja justamente não ter um sentido fixo?"
(Como quem sugere sorvete no café da manhã
e, de repente, parece uma ótima ideia.)
Eu, que estava tão empenhada
em entender a lógica do universo —
e a razão de sempre perder a meia esquerda —
acabei dançando com a louça suja,
ouvindo um samba imaginário
composto só de perguntas.
"Se tudo passa, por que insisto em estacionar nas dores?"
perguntou-me o refrão.
"Será que ser feliz é só não atrapalhar a alegria quando ela resolve aparecer?"
— respondeu o eco da geladeira, com certa sabedoria fria.
A vida, veja bem,
é um piano sem partitura,
e eu sou uma aspirante a pianista
que às vezes bate as teclas só pra ver se sai som.
Sai.
Às vezes dissonante,
às vezes mágico,
às vezes igualzinho ao barulho de quando a gente tropeça nos próprios pensamentos.
No fim do dia,
a música se despediu sem cerimônia,
com aquele tchau de quem volta,
mas nunca diz quando.
Deixou a sala bagunçada
e um sorriso no canto da minha alma.
Talvez o segredo seja esse:
deixar que a vida entre descompassada,
faça piada das certezas,
e me ensine — com batuque e risada —
que não é preciso saber dançar
pra não perder o baile.
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Autor:
Bulaxa Kebrada (Pseudónimo (
Offline)
- Publicado: 1 de outubro de 2025 13:23
- Comentário do autor sobre o poema: Hoje a música entrou pela janela da cozinha, junto com o cheiro de café. Não bateu ponto, não pediu crachá. Fez o que toda visita confiante faz: foi direto ao filtro de barro do coração e despejou um gole de lembrança. Uma nota mexeu na gaveta onde guardo chaves e medos; a letra, educada, organizou os talheres do pensamento; o refrão, atrevido, me ensinou a respirar entre uma trégua e outra do dia. Quando o silêncio voltou, não era silêncio de briga, desses que pesam na mesa. Era silêncio de copo d’água depois da corrida: simples, necessário, amigo.
- Categoria: Não classificado
- Visualizações: 4
- Usuários favoritos deste poema: Luana Santahelena, Sezar Kosta
Comentários1
Luana, minha colega de infortúnio,
O seu poema é a mais precisa crônica da vida moderna. A gente, com essa mania de ter sentido para tudo, insiste em arrumar a sala da alma quando a vida, que é esse amigo inconveniente, chega para desarrumar.
O problema não é o piano sem partitura. O problema é a nossa teimosia em procurar uma lógica para a meia esquerda perdida no meio do universo.
Mas você descobriu a simples e fria verdade que o eco da geladeira sussurrou: a felicidade é só não atrapalhar a alegria quando ela resolve entrar e bater o seu tamborim. Deixe a vida entrar descompassada. Não há sabedoria maior.
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