A música chega como aquele amigo inconveniente:
não pede licença,
não limpa os pés,
troca os quadros de lugar
e ainda me oferece um drink com guarda-chuvinha,
às 10 da manhã.
Pois foi assim hoje —
no meio da minha crise existencial número 537,
com a xícara fria na mão e o cabelo em greve,
ela entrou.
Desafinada, debochada,
com um tamborim onde antes morava meu silêncio.
Tentei ignorar.
Juro.
Mas ela tocou no ombro da minha rotina
e sussurrou:
\"Você já pensou que talvez o sentido da vida
seja justamente não ter um sentido fixo?\"
(Como quem sugere sorvete no café da manhã
e, de repente, parece uma ótima ideia.)
Eu, que estava tão empenhada
em entender a lógica do universo —
e a razão de sempre perder a meia esquerda —
acabei dançando com a louça suja,
ouvindo um samba imaginário
composto só de perguntas.
\"Se tudo passa, por que insisto em estacionar nas dores?\"
perguntou-me o refrão.
\"Será que ser feliz é só não atrapalhar a alegria quando ela resolve aparecer?\"
— respondeu o eco da geladeira, com certa sabedoria fria.
A vida, veja bem,
é um piano sem partitura,
e eu sou uma aspirante a pianista
que às vezes bate as teclas só pra ver se sai som.
Sai.
Às vezes dissonante,
às vezes mágico,
às vezes igualzinho ao barulho de quando a gente tropeça nos próprios pensamentos.
No fim do dia,
a música se despediu sem cerimônia,
com aquele tchau de quem volta,
mas nunca diz quando.
Deixou a sala bagunçada
e um sorriso no canto da minha alma.
Talvez o segredo seja esse:
deixar que a vida entre descompassada,
faça piada das certezas,
e me ensine — com batuque e risada —
que não é preciso saber dançar
pra não perder o baile.