NO EXATO MOMENTO EM QUE A JANELA SE ABRIU

Sezar Kosta

Era fim de tarde,

e o mundo pesava em mim

como um casaco molhado,

esgarçado pela insistência da chuva.

 

O trânsito parado

pulsava vermelho no vidro,

enquanto o rádio repetia desastres

com a frieza de quem já se acostumou.

 

Dentro do carro,

minha respiração era um bicho arisco,

saltando entre os vãos do peito —

apertado, impaciente, sem rumo.

 

Lá fora, um menino

corria com uma pipa improvisada,

feita de jornal e esperança,

rindo como se não houvesse grades no céu.

 

E então, sem aviso,

meu olhar grudou naquela dança de papel,

leve, teimosa, cortando o cinza com uma linha invisível

que não prendia — guiava.

 

Ali, no vácuo entre um suspiro e o próximo buzinar,

algo em mim cedeu.

Como se a alma, cansada de lutar contra o peso,

decidisse boiar por um instante.

 

Lembrei do cheiro do quintal da minha avó,

das tardes em que eu também corria

sem saber para onde,

só para sentir o vento rir comigo.

 

O semáforo abriu.

Mas eu fiquei um segundo a mais,

olhando o menino sumir atrás dos muros,

enquanto dentro de mim

se apagava um incêndio antigo.

 

Depois segui em frente,

não porque o caminho fosse novo,

mas porque algo dentro de mim

já não andava no mesmo lugar.

 

E nunca contei isso a ninguém.

Mas desde aquele dia,

toda vez que o mundo começa a pesar demais,

procuro, entre as frestas,

uma pipa improvável

voando onde menos se espera.

  • Autor: Sezar Kosta (Offline Offline)
  • Publicado: 4 de agosto de 2025 09:51
  • Comentário do autor sobre o poema: Há momentos em que a vida parece pesar tanto que tudo dentro de nós se aperta e perde o rumo. Mas, de repente, algo simples e inesperado — como uma criança brincando com uma pipa feita de papel — pode trazer um sopro de esperança e leveza. Essa pequena cena nos lembra que, mesmo em meio ao cinza e à rotina, ainda há espaço para a liberdade e a renovação da alma. E é nesse instante, silencioso e único, que encontramos forças para continuar.
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 22
  • Usuários favoritos deste poema: Sezar Kosta, Edla Marinho, Luana Santahelena, Spell mesclados, Poeta por acaso
Comentários +

Comentários3

  • Edla Marinho

    Bom dia, poeta!
    Maravilhoso poema que nos faz, deveras, refletir sobre como coisas simples do cotidiano é que nós trazem de volta só conforto da paz de espírito que sempre procuramos, muitas vezes em coisas grandes e complexas.
    Amei como você se inspirou e conseguiu colocar um lirismo tão marcante!
    Parabéns, ótima semana!
    Meu abraço!

  • Rosangela Rodrigues de Oliveira

    Nestas simplicidades da vida que mergulhamos e esquecemos dos problemas. Lindo seu poema. Parabéns poeta.

  • Luana Santahelena

    Que bonito isso que você escreveu.

    A alma, quando se cansa, só precisa de um fiapo de infância pra se lembrar que sabe voar.

    E há tanto de quintal nesse menino com pipa, que parece até que ele também veio da nossa rua de pedras e silêncios.



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