Era fim de tarde,
e o mundo pesava em mim
como um casaco molhado,
esgarçado pela insistência da chuva.
O trânsito parado
pulsava vermelho no vidro,
enquanto o rádio repetia desastres
com a frieza de quem já se acostumou.
Dentro do carro,
minha respiração era um bicho arisco,
saltando entre os vãos do peito —
apertado, impaciente, sem rumo.
Lá fora, um menino
corria com uma pipa improvisada,
feita de jornal e esperança,
rindo como se não houvesse grades no céu.
E então, sem aviso,
meu olhar grudou naquela dança de papel,
leve, teimosa, cortando o cinza com uma linha invisível
que não prendia — guiava.
Ali, no vácuo entre um suspiro e o próximo buzinar,
algo em mim cedeu.
Como se a alma, cansada de lutar contra o peso,
decidisse boiar por um instante.
Lembrei do cheiro do quintal da minha avó,
das tardes em que eu também corria
sem saber para onde,
só para sentir o vento rir comigo.
O semáforo abriu.
Mas eu fiquei um segundo a mais,
olhando o menino sumir atrás dos muros,
enquanto dentro de mim
se apagava um incêndio antigo.
Depois segui em frente,
não porque o caminho fosse novo,
mas porque algo dentro de mim
já não andava no mesmo lugar.
E nunca contei isso a ninguém.
Mas desde aquele dia,
toda vez que o mundo começa a pesar demais,
procuro, entre as frestas,
uma pipa improvável
voando onde menos se espera.