Sopro de outros dias

Anna Gonçalves

Não é só o verso que chega,
é o silêncio antes dele 
um tremor no meio da noite,
um sentimento que o vento desenreda.

São as fases da lua
escondidas no papel,
rascunhos de um tempo
que não quis ser tão fiel.

E quando a palavra insiste,
quando ela corta e não lava,
é o corpo que aprende
escrever é uma faca
que serena a alma inquieta,
mas primeiro a engrava.

São dias de escombro,
restos de versos na gaveta,
horas que doem
como pontas de lápis
quebradas no meio da página.

Mas eis que a madrugada
despeja seu suor de estrelas,
e a mão, antes surda,
ouve o rumor do mundo.
Do meu mundo interno e externo.

Então a palavra vem,
não como um milagre,
mas como um operário
que sabe o ofício da dor.

Ela corta, ela serra,
ela junta os cacos do tempo
até que a linha do poema
seja um fio de sangue,
um trilho,
um fio de esperança.

Porque escrever é isto
deixar que a vida
essa velha desordeira 
arrume seus cacos
no verso do seu próprio livro.

 

  • Autor: Anna Gonçalves (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 29 de março de 2025 10:28
  • Categoria: Reflexão
  • Visualizações: 3
Comentários +

Comentários1

  • Sergio Neves

    SERGIO NEVES - ...minha amiga...,...foste ao âmago de toda a representatividade de um processo inspiracional no que tange a um "trabalho" poético...,...foste muito feliz no "destrinchar" dessa questão...,...é assim mesmo,...o inicial é nos concebido como um sopro espiritual,...a partir de então vêm o "sofrimento" que é o tentar entrelaçar a concretude das então quase sempre "parcas" ideias com o que de profundidade há no que a alma nos dita...,...esse todo "pré-parto" é que é o "x" da questão,...o que se segue -o lápis no papel- é "só" conseqüência -..."trabalhosa" consequência, mas, consequência...,...e, olha, eu repito: ...foste feliz pra caramba ao poetar sobre o tema,...até o título cai como uma luva aludindo aos "sopros" celestiais "engavetados" à espera desse "ajuntamento dos cacos", como bem versas... // ...mil parabéns por essa tua inspiração e por toda a portentosa substancialidade do escrito... // (...vou confessar-te...,...eu sempre quis fazer algo do gênero (algo sobre esses "sopros de outros dias",... mas, nunca consegui o "entrelaçamento" preciso...,...agora é tarde...,...agora "Inês é morta"...,...chegaste primeiro,...e chegaste "matando a pau"...,...o que derramaste aqui me atrevo a dizer que é abrangentemente definitivo e poeticamente encerra o assunto...,...nada mais há que possa vir a modificar ou acrescentar alguma coisa a respeito...) // ...eita! ..."falei" pra caramba! ...mas,...dado à grandeza desse teu escrito, eu fui "obrigado"...,...a "culpa" e toda tua... /// Meu carinho, menina..

    • Anna Gonçalves

      Agradeço muito! Suas palavras e sua análise. Você consegue ver exatamente o que eu quero discorrer os mais profundos sentimentos e ideia. Gratidão



    Para poder comentar e avaliar este poema, deve estar registrado. Registrar aqui ou se você já está registrado, login aqui.