Olho para trás e vejo mortos e feridos de batalhas que a vida inventou, apenas porque estávamos vivos. No presente em que me vejo olhando para trás, eles não podem retornar às carnes abandonadas, mas sobrevivem nas partes mais íntimas da minha alma. Todos os que dobraram às esquinas opostas as que virei, sumiram da paisagem desta minha alongada estrada.
Olho para trás e vejo terrenos baldios em que jogávamos bola, esperando a infância terminar. À época não sabia que o findar seria tão rápido, pois tudo que antes me cercava parecia banhado de eternidade. A substância inocente de que são feitas as crianças é frágil, passageira e volátil.
Olho para trás e vejo que aqueles terrenos, em que deixei minhas pequenas pegadas enterradas, estão hoje ocupados por elevados prédios, repletos de apartamentos de 60 metros quadrados, onde se assistem novelas, telejornais e seriados. Em suas varandas, varais de roupas estão penduradas, como se fossem bandeirinhas de São João, a tremular no vento que restou do verão passado.
Olho para trás e vejo casas que não existem mais, e fantasmas despejados vagueiam atônitos pelas ruas da cidade, feito mendigos desempregados. Tanto as pedras, os tijolos e os telhados se vão, mas ficam os fantasmas esfomeados, que não assombram os novos quartos das crianças recém-chegadas.
Olho para trás e vejo a loja Sloper e minha mãe comprando estojos de maquiagem, para posar bonita às fotos em que seu rosto ficou guardado, que nem tatuagem gravada na pele envidraçada dos porta-retratos.
Olho para trás e vejo meu Joaquim perplexo olhando no espelho seu corpo crescendo, enquanto a Terra gira ao redor do Sol, comemorando aniversários.
Olho para trás e vejo o que ficou para trás...
- Autor: joaquim cesario de mello ( Offline)
- Publicado: 21 de junho de 2023 07:22
- Categoria: Não classificado
- Visualizações: 8
Comentários2
Caro Joaquim, seu texto nos envolve e também nos faz olhar para traz e refletir sobre os valores das coisas simples do caminho caminhado...
Aqui nesse seu espaço faço minha leitura diária e saiba, quando não um comentário, sempre faço questão de acionar esse botãozinho acima de 'Curtir'. Se tiver apenas 1, foi o meu!
Abraço
Caro Hébron, companheiro de viagens literárias. Claro que é sempre bom poder receber comentários, análise, feedbacks e críticas. Porém, melhor ainda é poder ter seu texto sendo lido por olhos sensíveis e significativos, como os teus e de outras pessoas. Eu mesmo, por exemplo, dou uma passada nos textos alheios, embora não seja muito de comentar (talvez uma falha minha). Agradeço sinceramente tuas palavras acima.
Que poético!!! Brilhante!!!
Quem dera o passado não fosse só lembrança, infelizmente ele não volta, mas este nos constrói!
Como escreveu Henri Bergson, “nossa duração não é um instante que substitui um instante: haveria sempre, então, apenas o presente, nada de prolongamento do passado no atual, nada de evolução, nada de duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que rói o porvir e que incha ao avançar. Uma vez que o passado aumenta incessantemente, também se conserva indefinidamente.”
Neste sentido, caro colega, na subjetividade metafísica do ser humano, o passado não passa, pelo contrário acumula-se. Não há, portanto, presente, psicologicamente falando, que o passado nele não esteja (consciente e/ou inconscientemente).
Obrigado pela sua leitura
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