I
Derivo de antigos troncos mutilados.
Aos poucos vou dissipando,
viajo na cama escura,
úmida e muda.
Na preia-mar
ou na água preguiçosa,
simplesmente espero...
Dentro da minha casa só existe poesia
e ela repercute no divino espetáculo
de luzes e cores.
II
No furor afobado das mãos suadas,
sou oferenda lançada ao mar,
sou carta de amor
em impenetrável vitral.
Meu quintal é o oceano
e vou cultuando as palavras.
Na linha do tempo,
traçados, dores e alegrias,
desejos e um pouco de poesia.
Delineados que marcam a minha pele,
tatuagem que não compreendo.
III
Vou ressuscitando pensamentos,
só os bons,
vou observando o crepúsculo,
a folia dos meteoritos,
adormeço no abrigo das ondas,
no vento que sopra forte,
observo a apartação das nuvens,
me banho no doce orvalho,
tenho o peso das travessias
e permaneço detida
na quietude das coisas invisíveis...
IV
À deriva em alto-mar,
encontro outras garrafas,
âmago em movimento,
não são cartas invulneradas,
não possuem atas,
discursos medievais,
escrituras, declarações de amor,
são apenas líquidos,
sidras com rótulos ilegíveis,
drogas psicotrópicas,
lícitas e doces.
V
Navegando encontro:
sacolas plásticas,
um calçado,
uma boia acerejada, pálida e eivada;
vejo placas,
encontro um escafandro,
cruzo com tartarugas,
com o periscópio,
tem um cilindro ondejando
e um golfinho me sorri.
VI
Encontro:
tábuas,
velas de uma
antiga embarcação,
máscaras que abraçam sem permissão.
Encontro:
caixas
e luvas de algum cirurgião,
Encontro:
um pássaro
e ele repousa sobre mim,
me olha e vai embora...
VII
Vou matizando o silêncio,
dilapidando instantes,
conto os dias e as noites.
Na tardança,
no anseio de chegar,
me refaço calma,
sei que estou pronta,
sinto o arremesso que remove
o filete elástico do meu gargalo,
sei que estou perto,
sinto o choque das ondas sobre a praia,
outra investida, bancos de areia, recifes...
VIII
A chegança me faz tremer.
Vou despindo pensamentos,
desejando encontrar um lugar edênico,
desejando te encontrar,
esperando o seu toque,
suas mãos que vão me varrer,
clarear minha casa,
me libertar da fina areia incrustada,
me libertar da cortiça,
para que eu possa enfim,
refrescar, respirar,
me resgatar.
IX
Continuo imaculada,
queimei como um náufrago
e finalmente sinto a areia úmida,
que refresca meu interior.
Quem sabe
serei encontrada, examinada,
dobrada, (re)lida,
dissolvida, guardada,
reciclada ou vire notícia
ou comida de primitivos insetos,
traças prateadas.
X
Ao te encontrar respirarei,
evasão de minha pele.
Ambiciono ser lida,
em voz alta,
com os dedos
ou em pensamentos.
Talvez,
não mais o encontre
Ou talvez eu te descubra
no limiar da primeira estrofe,
no vago e exato silêncio
das palavras incompreendidas.
XI
Talvez eu te encontre nos versos,
na caminhada solitária do eu-poético,
nos caracteres tortuosos
produzidos pelas mãos trêmulas,
na margem da próxima página
ou talvez seja emoldurada
próximo a sua cama.
Talvez eu te encontre
na primeira frase,
no post scriptum,
ou quem sabe, simplesmente
seja invadida pelos seus olhos.
- Autor: Ive Nenflidio (Pseudónimo ( Offline)
- Publicado: 29 de janeiro de 2022 22:03
- Categoria: Não classificado
- Visualizações: 14
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Comentários2
Simplesmente lindo!
Parabéns pela privilegiada inspiração.
Boa noite a poeta, Ive Nenflidio.
Privilegio ler te !
Parabéns até as estrelas .
Abraço.
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