A arte de ignorar

Anna Gonçalves

De que mina profunda surge essa arte de parecer nada?

De fingir que não há espinho,

E calar o grito num doce carinho

Que nunca se deu?

 

É herança antiga, presunção vazia,

De achar que a outra face já trazia

A resposta escrita, o juízo pronto,

E assim se ergue um paredão, o laço, o ponto

No "i" que se apagou.

 

Inventamos estórias e imaginamos coisas do que o outro sente,

E perdemos o norte da nossa própria gente.

Falamos por códigos, gestos, por sombras, por indícios,

E engolimos a fala com seus próprios suplícios

No sal da garganta.

 

Onde foi parar a coragem clara

De trazer a mesa, a palavra rara

Do "eis o que sinto", do "eis o que machuca",

E buscar na fala, e não na fuga,

O traço do "i"?

 

Procuro em gavetas, reviro a memória e as falas,

E vi que perdi minha sede dessa simples vitória.

Quem viu meu senso de pôr os pingos, inteiro?

Está soterrado sob um mundo inteiro

De "deixa pra lá", "tanto faz", "o que era pra ser, foi".

 

E no fim, nem era pra ser encontrado.

Lá fora, no outro, num gesto cavado.

Mas olhar dentro, com paz ou com guerra,

E tirar a âncora que prende à terra

O "i" que há em nós.

 

Porque o "i" não é ponto de orgulho ou razão,

É a letra que falta na nossa expressão.

É o risco que falta pra fechar a frase,

É dizer ao mundo, sem disfarce ou cerco

"Eis onde eu estou."

 

 

  • Autor: Anna Gonçalves (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 30 de dezembro de 2025 20:32
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 2


Para poder comentar e avaliar este poema, deve estar registrado. Registrar aqui ou se você já está registrado, login aqui.