São Paulo em dois

Anna Gonçalves

Na rua que desce do Bixiga,

Vila Madalena e República,

um cheiro de pão e dendê.

No passo do imigrante, a pressa 

o trem não espera por ninguém.

A cidade corre em celular,

em terno, em lona, em chinelo de dedo,

enquanto a rádio toca samba

e o freguês pede um café bem cedinho.

 

Na esquina da República,

o dia ainda nem raiou

e já tem fila no orelhão,

voz que busca um norte distante.

                 [Alô, mãe, aqui tá difícil,

mas hoje eu consigo o emprego.]

E o sol, entre os prédios altos,

distribui migalhas de ouro.

 

Do centro expandido, ziguezagueiam

histórias que a TV não mostra

tem vila com muro grafite,

tem quitanda com goiaba do Pará,

tem oficina, bar com pastel,

criança pulando amarelinha

numa laje que vê  lá longe 

os vidros espelhados da Faria Lima.

 

Mas na mesma calça, outra costura,

debaixo do viaduto, o dia

é garrafa, papelão, o ócio

que queima no cachimbo e o álcool que queima a alma e a palma da mão.

A cidade tem dois andares,

quem sobe escada rolante,

quem desce ao colchão de concreto.

E entre um ponto e outro de ônibus,

uma vida inteira cabe.

 

São Paulo é feita de frestas,

onde a umidade escorre

de uma parede sem reboco,

ali nasce um jasmim-manga.

Onde o relógio da firma aperta,

alguém para, compra um girassol

do vendedor do semáforo,

breve beleza contra o cinza.

 

Aqui, a riqueza não é só cifra,

é o sotaque que arrasta o “r”,

o chá de boldo que cura saudade,

o trabalhador que, na sexta-feira,

pega a condução cansada

e leva no colo um sonho

embalado em sacola de mercado.

 

São Paulo, cidade-glossário,

teu dicionário tem duas capas e contra capa,

na primeira, o mapa dos negócios,

na segunda, a cartografia da sobrevivência.

E no meio, um rio sujo e com cheiro de realidade que teima

em refletir, quando a luz alcança 

o rosto de quem ainda acredita

que esta selva de concreto

ainda é chão, ainda é terra,

ainda é capaz de florir.

  • Autor: Anna Gonçalves (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 7 de dezembro de 2025 16:26
  • Categoria: Reflexão
  • Visualizações: 2


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