Uma crônica de um certo dia: O SENHOR DAS CAPITAIS

Jairo Muitonegro

O Senhor das Capitais

 

Um dia desses, eu estava numa fila única de mercado, daquelas filas que quando vão chegando a vez de cada cliente, eles vão sendo encaminhados para um de vários caixas que atendem a mesma fila. A fila única do mercado é aquele lugar estranho onde todo mundo espera em pé, olhando para frente como quem não quer nada com ninguém. Eu era assim naquele dia — fones de ouvido bem enfiados nos ouvidos, podcast tocando, meu mau humor típico embrulhado no peito como uma mochila pesada. Tudo bem. Eu só queria passar por tudo aquilo invisível.

Mas tinha um senhor ali. Uns oitos passos à minha frente, conversando. Conversando mesmo. Aquele tipo de pessoa que fala com geral, sabe? Com a moça do caixa, com o casal atrás dele, com o vazio se fosse preciso. E o pior — eu podia ouvir o ruído de sua conversa até com os fones num bom volume, não entendia bem o que dizia, ouvia apenas ele falar o nome de alguns países, pensei com os meus botões — deve ser daquele tipo de sabichão, que diz saber tudo do mundo. Espero que ele não venha falar comigo. Por favor, qualquer coisa menos isso.

A vida, porém, tem um senso de humor questionável.

Quando cheguei no caixa que me atenderia, adivinha? Era justamente onde esse senhor estava terminando seu atendimento. E quando ele me viu, seus olhos brilharam com aquela lucidez que algumas pessoas têm — a capacidade de enxergar alguém e saber, de repente, que precisa mexer com essa pessoa.

Ele se virou para mim com um sorriso que não era invasivo, mas simplesmente caloroso. E disse:

— Ô, me diz um nome de um país qualquer que eu te falo qual é a capital e a moeda local!

Pronto. Não escapei.

Meu primeiro instinto foi aquele de sempre: não, obrigado, deixa eu em paz. Mas sabe aquele momento em que você vê a sinceridade tão clara nos olhos de alguém que fica difícil ser grosso? Era isso. O sorriso daquele senhor não era arrogante. Era genuíno. Afável. Daquele tipo que te faz pensar: caramba, esse cara tá mesmo querendo conversa.

Eu tirei os fones.

Sorri para ele — sim, sorri de verdade.

E meu cérebro? Travou. Me pegou de surpresa mesmo. Nomes de países piscavam na minha cabeça como um neon com defeito. Mas aí veio: Nigéria. Eu estava estudando sobre o povo Yorubá e seus Orixás em casa, e a Nigéria mora em algum lugar da minha memória por causa disso.

E ele? Disparou: Abuja, Naira. Tão confiante, tão feliz de estar compartilhando aquilo comigo. Eu nem sabia se estava certo ou errado, mas não importava. Ele continuou ali, esperando.

— Fale outro! — ele disse, com os olhos brilhando.

Butão. Saiu assim, do nada.

E ele respondeu outra vez. Capital, moeda, tudo certinho. Ou pelo menos parecia. Naquele momento, eu pensei: se esse cara está me enganando, eu nem teria como saber. Mas não importava. O que importava era aquele brilho nos olhos dele, aquela alegria pura em compartilhar conhecimento que ele carregava como uma coleção especial.

Ele já tinha terminado de colocar suas mercadorias na sacola no caixa então se despediu com um aceno cordial e foi embora. Eu continuei a passar minhas compras, ainda com um sorriso besta estampado na boca.

 

 

 

No Ponto de Ônibus

 

Peguei minhas compras e fui para o ponto de ônibus. Quando estava chegando mais perto do ponto, eu o vi sentando no banco do ponto de ônibus, ele não me viu chegar então tirei novamente meus fones do ouvido, e já cheguei falando o nome de um outro país:

— Qual a capital de tal país?

Ele se virou para mim, sorriu e respondeu. Eu perguntei outro. Ele respondeu de novo. E aí ele soltou:

— Eu falo o nome de todos os países do mundo com suas capitais e moedas correntes em 5 minutos! — (ou era 10? Sinceramente, perdi a conta na emoção).

Naquele momento, algo clicou em mim. Não era só conhecimento que aquele homem tinha. Era paixão. Era prazer genuíno em fazer aquilo.

E aí meu mau humor abriu espaço para um pensamento que não é muito típico de quem tem pressa:

— Sabe, você deveria ir num desses programas de TV, sabe? Do Sílvio Santos, do Ratinho… Você ia ganhar uma graninha.

Ele negou com a cabeça. Tranquilo. Sem hesitar:

— Não, não. Eu faço só por prazer próprio.

Só por prazer próprio.

Aquela frase ficou ecoando enquanto meu ônibus chegou. E — coincidência que não era coincidência — era também o ônibus dele.

 

 

 

No Ônibus

 

Fomos conversando. País, capital, moeda. Ele ia despejando nomes de lugares que eu mal sabia que existiam, e eu ali, fone desligado, ouvindo como se fosse a coisa mais importante do mundo. Porque era. Não pela quantidade de informação — estava tudo ali, em algum lugar da internet. Mas pela forma como aquele senhor entregava aquilo.

Com alegria. Com sinceridade. Com aquela rara capacidade de transformar conhecimento em conexão.

Enquanto isso eu e ele chamávamos a atenção de todos no ônibus com aquela conversa maluca, todos olhavam pra nós.

Então chegou meu ponto de saltar do ônibus, eu dei o sinal me despedi dele, e desci do ônibus. Nunca mais o vi. Mas aquilo ficou comigo.

 

 

 

 

 

O que Restou

 

Tem uma coisa que a gente não espera quando acorda naquele dia: que um senhor falante no mercado seria capaz de vencer nosso mau humor com nada mais que curiosidade genuína, sorriso sincero e a paixão desinteressada por aquilo que sabe.

Que a vida teria espaço, entre as presas e as compras e a pressa, para pequenos momentos de troca real.

Eu não queria conversar. Estava fechado no meu mundo, com meus fones, meu mau humor, minha solidão escolhida. Mas aquele senhor? Ele sabia algo que eu tinha esquecido: que às vezes o maior presente que podemos dar a alguém é simplesmente ouvir, com atenção de verdade.

E ele também sabia que isso funcionava nos dois sentidos.

Aquela tarde no mercado, no caixa, no ponto de ônibus, no ônibus — ele me alegrou tanto quanto eu, espero, o tenha feito feliz. Porque aquele homem não queria ganhar dinheiro na TV. Queria apenas dividir sua alegria.

E dividiu. Comigo. Um cara desconhecido, com fones de ouvido e mau humor, que no final das contas, tirou os fones e sorriu.

Às vezes é só isso que a gente precisa.

 

 

 

Jairo Muitonegro

  • Autor: Jairo Muitonegro (Offline Offline)
  • Publicado: 18 de novembro de 2025 15:51
  • Categoria: Reflexão
  • Visualizações: 6
Comentários +

Comentários2

  • Vera lucia

    Seu texto é excelente. Você consegue transformar o cotidiano em algo significativo, com uma escrita clara, sensível e envolvente. Sua crônica prende, emociona e faz pensar. Parabéns pelo talento e pela capacidade de revelar beleza nas pequenas coisas do dia a dia, perceber o que realmente vale a pena dar atenção despretensiosa e tirar da experiência o melhor!!! Isso é a leveza da vida!

  • Rodrigo Montoya (Acústico Montoya)

    Verdade, basta ouvir, seja um desabafo ou uma conquista. É o suficiente em muitos momentos.??????



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