Desculpa Heráclito

Um dia ouvi uma frase que por muito tempo carreguei como verdade. Dizias tu, Heráclito: “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda nem o rio nem o homem são os mesmos.” Embriagado pela autoridade de um grego consagrado e desatento ao próprio coração, aceitei tua sentença como destino inevitável.

Mas eis que, ao ouvir outra voz, percebi a ferida que ela abria: como se pode amar alguém se não é possível reconhecê-lo? Como afirmar que cada batida do coração pertence a um ser que já não existe, se a imagem criada em nossa mente desfaz-se a cada instante? E não seria arrogância do homem julgar-se conhecedor de quem ama, quando, após saciar-se, enfastia-se e abandona? Não seria isso perversão travestida de sentimento?

Estremeci diante dessa possibilidade. Pois como poderia ser verdade se, quando não estou contigo, te desejo, e quando te toco, parece que ainda te busco distante? Vivo em ti mesmo quando longe, e mesmo que ignores minha devoção, meu pensamento repousa em nós. Não amo apenas a sombra que imagino, mas também o ser que vejo e, por vezes, não compreendo. Sorrio ao descobrir em ti o mistério, pois cada nova face revelada não me afasta, mas renova em mim a certeza de que ainda não conheci todo o abismo do teu encanto.

Talvez eu seja louco, talvez exagere em palavras, mas de uma coisa tenho convicção: o que sinto não se curva à dúvida, nem à filosofia. O meu amor é real, e permanecerá, mesmo quando o tempo insistir em mudar-te diante de meus olhos.

Perdoa-me, Heráclito, mas talvez, ao banhar-me pela segunda vez, não o fiz para reviver a primeira. Fiz porque, na constante metamorfose, descobri que nada é mais belo do que mergulhar sempre de novo no mesmo rio, apenas para encontrar a mesma pessoa em mil versões diferentes, todas elas amadas com igual fervor.