Vazio contemporâneo - cruz moderna

Anna Gonçalves

Que era é esta, que nos consome por dentro?
Não é a fome, a peste, ou o inverno cru.
É um mal mais subtil, um deserto no centro,
Um sentimento de nada, um ímpeto sem vértice...

Falamos,
                             [falamos sem tréguas, sem pecado],
Na ágora (grande praça aberta) infindável de cristal e luz.
Cada gesto, um teatro ensaiado,
Cada palavra, um adorno que nada produz.

Confessamos a um deus que é a Plateia,
buscamos absolvição no brilho transitório de um like,
e queremos sempre ser notado.
Abolimos a culpa, a sombra, a ideia,
e no palco vazio, performamos o que não gostamos.

O vazio não é a ausência, é a nova presença,
um conteúdo de puro formalismo e aparência.
É o ícone sem rosto, a prece sem crença,
É o desejo que se expõe, mas teme a própria essência,
ícone sem santidade, sermão sem dogma, toque sem caridade.

Como o príncipe Mishkin, buscamos a beleza,
e encontramos apenas a estética da embalagem.
Vendemos a alma por uma nesga de leveza,
numa feira de vaidades sem nenhuma linguagem.
Preferimos a taça brilhante e vazia ao líquido que mata a sede.

Pergunto, com a alma de um andarilho cansado...
                           [Para que serve o homem, tão bem representado?]
Onde está a luta, o suor abençoado?
Onde o "pathos" que eleva o ser, dilacerado?
                            [emoções, sentimentos, paixão, sofrimento e afeto]

Tudo é permitido, na sua fé doentia.
E assim, na jaula de ouro da comunicação,
permitimos o vazio, incessantemente,
até que a máscara seja a nossa única expressão.

Talvez,
nesse novo vazio, ensaiemos um suicídio lento da alma 
um morrer por esquecer que o sentido dói, que exige risco.
E no entanto vivemos: performamos, desejamos, repetimos a máscara
até que ela cole ao rosto e perdíamos, por fim, o traço do homem.

Eis aqui a cruz moderna, o nosso fardo moderno,
a indistinção entre personagem e carne.
Não ser.
Apenas um reflexo no ermo,
um performer de si, no grande teatro interno
Onde o vazio é o drama, e o drama é eterno.
Eis a nossa era do vazio,
um ruído que se faz mundo.

  • Autor: Anna Gonçalves (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 12 de setembro de 2025 17:07
  • Categoria: Reflexão
  • Visualizações: 1


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