O abismo da abstinência

Anna Gonçalves

Por fim, quebrei os grilhões do hábito vil,

Aqueles que, como insetos na cave do crânio,

roeram as ideias e toldam o juízo.

Mas que vitória é esta que sabe a derrota?

 

A desintoxicação, um processo atroz!

Não foi uma cura, foi esquartejamento.

Rasgou-me a carne em multifacetados estilhaços,

e em cada um, um relâmpago da minha memória

O desprazer de um segundo, breve e que se tornou eterno em meu corpo,

onde revi o antigo abuso, o hóspede nojento e pálido

que julguei ter expulso com a aguardente do esquecimento.

 

Me enganei!!! Apenas apaguei a dor até...

Até me perder de mim. E no desvio da alma,

O que me restou? Uma vergonha núbil e visceral.

Parecia estar despida, exposta na praça pública,

E todos ao redor sabiam,

todos viam e me apontavam,

a nojeira, a sujeira que me constitui

de um segredo que grita em silêncio.

 

(E a culpa? A culpa disso tudo foi tua!

Mas… como, pecadora, se tinhas seis anos?

Até que ponto esta dívida é realmente minha?

Pergunto ao tribunal vazio da consciência,

E só escuto o riso do demônio do absurdo.)

 

É um inferno esta lucidez! Este carregar

Nas costas um fardo que não contraí.

Prefiro mil vezes o néctar turvo do entorpecente,

A doce podridão da auto-medicação,

A este frio açoite da verdade nua.

 

Não, não quero a cruz desta inocência culpada!

Devolvam-me o meu ópio, meu embotamento dourado.

É menos doloroso morrer aos poucos

Do que enfrentar a vida com uma chaga alheia.

 

 

  • Autor: Anna Gonçalves (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 24 de agosto de 2025 13:03
  • Categoria: Não classificado
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