Do outro lado da rua, naquela casa de paredes pintadas cor de vinho tinto, mora uma senhora e ela toca uma viola.
…
Era assim que eu ia começar contando a história de dona Luisa. Eu pensava em sempre observá-la de longe, investigar que horas acorda, dorme, sai, volta. Eu sempre dando voltas nessa minha mania, que aprendi desde cedo com … Minha mãe, minha tia, minha avó, com a vizinha de frente e o que posso fazer? Me mato? Não tem como tirar esse mal aprendido, a mania de olhar pela fechadura a vida alheia… Já ouvi até dizer que um dos fundamentos da comunicação do ser humano era a fofoca. Deve ser por isso.
Na verdade Luiza sou eu, a dona Luiza, como dizem por ai, dona… de que? Enfim, 62 anos, deixada a essa altura por uma loira de 1,75, com dinheiro ainda por cima, 30 anos casada, 30 anos calada, 30 anos cag… Pode rir, exatamente, eu que quando nos meus 17 anos disse aquela erva daninha da trama amorosa de todo casal de novela, a da minha mãe, a da minha madrinha e amigos e a lista aumenta se eu for ficar abrindo as camadas da cebola, até chegar no centro só me restaria uma coisa - lágrimas. Mas voltando ao assunto, eu dizia “comigo não”, olha a energia que eles perdem nisso, Terminei o ensino médio e parti para a cidade grande.
Mas bom a questão é que trocada, sozinha e a essa altura do campeonato me deparei aqui nessa casa, e do outro lado da rua, um rapaz de 30 e poucos anos está sempre na janela daquele prédio e comecei a perguntar-me o que ele tanto olha, o céu é o mesmo, as pessoas as mesmas, é tudo igual, ou ele deve ainda viver encantado, nessa idade eu nem lembro como era. A questão é que comecei a achar que ele anda me espiando e juntando as minhas manias uma a uma para… Para escrever um livro, quem sabe, por que não?
Ela já é a terceira senhora que se muda para aquela casa. Moro aqui desde sempre e alguém sempre morre e alguém sempre vende essa casa e vende rápido. E eu não pude deixar de reparar nas manias absurdas dessa senhora que para ai mudou-se faz, Sei lá, sou péssimo com contar os dias, para mim eu faço pausas dormindo para continuar no mesmo dia. Menos de quatro noites seguramente.
Para me ocupar comecei a escrever, comecei a andar entre as palavras pois meu cérebro estava estagnado. Essa coisa de por palavra por palavra e tecer histórias e que histórias estivessem dentro de outras tantas me intrigava a continuar no jogo.
Eu gosto sempre de olhar o objeto com seus atributos e funcionalidades, minha personagem do outro lado da rua, permanece até tarde acordada, a luz sempre a vejo ligada, cortinas fechadas, mas se ela sai de casa cedo, como é que dorme tão tarde, só pode deixar a luz ligada. O anterior era um bêbado, um baixinho gordo, não existe nenhum problema nisso, pelo contrario eu sou baixo e as laterais já se alargam, Mas o satanás passava noite em claro, bêbado, Essa é outra história que escrevi, depois você ler, um senhor por volta de 40 anos que deixa a mulher e depois filhos por mais uma mulher e dois filhos. Haja paciência para recomeçar esse ciclo, outra e outra vez. O amor é um sentimento tão subestimado, uma coisa tão encantadora, uma coisinha ensinada desde pequenininha até se entender direitinho o funcionamento da coisa.
Mas se esta dona anda deixando a luz ligada a noite inteira, por descuido talvez, certamente, Bom, não a vejo tão senhora assim, é bonita, toca muito bem violão e canta. Embora cantar ela não cante muito bem não, até eu que não gosto muito do meu canto, canto melhor que ela, Mas isso pouco importa, importa que as letras de suas canções me agradam, tem algo de lírico, de algum modo ela parece romântica mesmo não parecendo. Foi nesse algo dela, da luz, que encontrei a desculpa para travar uma conversa, Que que tem? podemos ser amigos, não me custa nada, no máximo ela me chama de mal criado, abusado, Eu obviamente serei o mais educado possível.
Eu tenho que me manter ocupada, era isso que eu pensava, entre a preparação de minhas aulas e o vazio de atitudes que povoa o momento e a cabeça aproveita-se da brecha e me leva de novo a remoer o mesmo grão. Vamos voltar ao Estudo dos Gases, o problema é que eles não imaginam as coisas, chegam no ensino médio sem imaginação, quem é que ler sem imaginação? E depois como ensinar isso a eles? Nessa idade? No caderno, eles desenham pirocas, nos livros, mais pirocas, nas paredes, carteiras, de caneta, lápis, corretivo, Que mania adolescente tem de desenhar pinto. Outra coisa superestimada. Deviam ocupar-se um pouco mais com desenhar o que estudam, falar sobre livros, brincar de escrever poesias e transformar o que é difícil em algo o mais próximo possível de sua própria linguagem, de sua experiencia concreta, Mas eu professora que já levo tudo numa bandeja de prata, mastigado, regurgitado, eles dizem um grande, Big, Não!, os pintos são nossas abstrações imediatas, lá pelos 30 e poucos vão ver o trabalho que é refazer o caminho oposto. Deixar os pintos e rumar em busca de coisas menos palpáveis.
Ela toca violão depois do meio-dia, todo dia, domingo, as vezes não, De cortinas abertas ela pinta, E hoje, que não é domingo, o que consegui capitar do canto era algo mais ou menos assim:
Será que no mundo que existe aí dentro
Eu sou apenas um devaneio
Um móvel solto, sem lugar
Enquanto você em pensamentos atlânticos
Desbravando os oceanos
Eu vou levando aqui, no meu lugar
E se na sua viagem pelo mundo
Um passo em falso, por descuido
Eu posso te acomodar
E se nas entrelinhas dessa vida passageira
Você decide ficar a noite inteira
Te faço um verso e deixo o mundo acabar
A critica continua dizendo que meu livro sobre um senhor que troca constantemente a mulher e seus dois filhos por outra mulher e tem mais dois filhos é um dos meu melhores romances. O fato dele está querendo sempre a novidade para experimentar aquela mesma sensação é a corda que o agarra das garras do efeito da passagem do tempo, Ele sente-se mais uma vez o mesmo.
É que ninguém se importa, Eu deixo todo dia a luz acesa de propósito, deixo a porta aberta, não arrumo a casa para sentir o caos da passagem dos dias, Não me alimento mais nos horários habituais. Aprendi a costurar na mão, ponto a ponto, minhas roupas, Fumo toda sexta-feira depois de lavar uma pilha de roupa à mão. Para que usar a maquina?! Eu tenho tempo, vou fazer o que? Brincar de passar o dia usando a tela de celular de escorregador para o dedo? Não, isso não, num posso...
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Autor:
Binho (Luiz Herbet Cezario) (
Offline)
- Publicado: 11 de agosto de 2025 17:07
- Categoria: Não classificado
- Visualizações: 2
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