É que às vezes... Eu só queria não ser engolida. Por mim mesma, por memórias que não me pedem licença, por uma ideia mal passada de quem eu deveria ter sido. Queria a leveza de não pensar o que pensam de mim. Ou o que eu penso que pensam o que talvez seja ainda mais cruel. Queria não carregar o fardo do pensamento alheio ou da imagem que projetei nos outros, sem saber se era verdade ou loucura... Queria não ter esses medos tão meus, tão íntimos, que me acompanham como se fossem parte do meu corpo, um órgão a mais. Sinto falta de uma parte de mim que fui perdendo devagar, como quem esquece o gosto de uma fruta que adorava na infância ou de um cheiro que remete aquela lembrança.
Há em mim tantas vozes, tantas versões, que já nem sei qual delas escolhe o que eu faço.
E talvez não exista escolha real, apenas uma sucessão de impulsos que chamamos de vontade. Sinto a ausência de mim como quem sente a morte sem morrer. E, ainda assim, sonho todos os dias. Mesmo que às vezes prefira dormir demais para não ter que acordar em mim. Queria querer menos. Ou pelo menos, querer o que posso. Mas o querer é insaciável. E talvez a liberdade não esteja em desejar o impossível, mas em aceitar que ser inteira é impossível.
Afinal, ser gente é isso, não ser uma só. E ainda assim… continuar sendo. Porque o querer, este verbo voraz, não basta para impedir que sejamos fragmento. E talvez a cura não esteja em escapar das nossas devorações, mas em aceitá-las como parte do banquete da existência.
E esse meu “eu” não é prisão é processo. Não é unidade é colisão. Ser devorada é, também, ser moldada. E sobreviver ao que nos consome é, paradoxalmente, a forma mais humana de continuar sendo. A consciência é uma verdadeira maldição! Nos revela que somos múltiplos, inacabados, e sobretudo, condenados à liberdade. E ser livre é suportar a responsabilidade de ser devorado... por si mesmo.
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Autor:
Anna Gonçalves (Pseudónimo (
Offline)
- Publicado: 9 de agosto de 2025 19:16
- Categoria: Carta
- Visualizações: 2
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