A Xícara Trincada (O cotidiano como poesia: afeto, silêncio e beleza no simples viver.)

opoetatardio

Quatro e pouco. Acordo antes da cidade.
A luz da cozinha acende, o cursor do notebook pisca,
o Word em branco pede versos.
Às vezes, a pia ainda carrega lembranças do jantar de ontem:
três pratos, alguns talheres — e um silêncio que respinga.

Às dez para cinco, colho couve e ora-pro-nóbis no quintal.
Faço um suco verde e entrego um copo à minha esposa.
Ela sai pra caminhar.
Eu fico — e acordo nossa filha ao som de K-pop.

O café da manhã segue um ritual: crepioca, ovos, frutas.
A liturgia do dia toca de um aplicativo.
Enquanto comemos, falamos de contas, de planos,
da vida que caminha — e também rimos.

Levo as duas: uma para aprender, outra para ensinar.
Escolas diferentes, mas o mesmo cheiro de giz.

Volto. Molho a horta. Reviso a agenda.
Olho prazos, penso nos clientes.
Se der tempo, escrevo.
A poesia ainda não me paga — mas sustenta a alma.
Às oito, saio de casa para conquistar o meu dia.

Minha rotina não é prisão — é afeto encadeado.
Uma espécie de amor em série.

Entre um afazer e outro, penso:
a vida, às vezes, é como aquela xícara trincada no armário.
A que ninguém escolhe pra visita.
Mas é nela que o café parece estar mais quente.

Nas redes sociais, o mundo vive em festa:
quase uma orgia de dopamina.
Gente em praias, brindando ao pôr do sol.
Carros caros. Filhos prodígios. Casamentos filtrados.

Mas isso é só o que se mostra.
A maioria vive como a gente:
entre o despertador e o dia lá fora,
entre boletos e pequenos milagres.
Só que isso — quase ninguém curte.

A armadilha é tomar o recorte pela realidade inteira.
E esquecer que o extraordinário — quase sempre — se disfarça no comum.

A vida simples não se exibe.
Ela sussurra.
Talvez por isso não se poste:
porque o essencial não se posta — vive.

@opoetatardio — Pedro Trajano
https://opoetatardio.blogspot.com

  • Autor: Trajano (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 5 de agosto de 2025 14:28
  • Comentário do autor sobre o poema: Nesse poema eu retrato a beleza e profundidade de uma rotina simples, marcada por pequenos gestos de amor e presença. Entre afazeres domésticos, responsabilidades e silêncios compartilhados, revela-se uma vida real, longe dos filtros das redes. Nela, o extraordinário se oculta no ordinário.
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 6
  • Usuários favoritos deste poema: Edla Marinho
Comentários +

Comentários2

  • Luana Santahelena

    Meu bom amigo,

    Você escreveu com o coração do lavrador que planta ternura nas brechas do cotidiano.
    Vi nas suas palavras o bule de café que eu coava cedo, os passos da casa acordando junto comigo, e aquele sossego miúdo que ninguém fotografa, mas aquece a vida.
    Continue assim — fazendo da rotina uma poesia que escorre das mãos como farinha no pano limpo.

    • opoetatardio

      Luana,
      Suas palavras me tocaram como a brisa mansa que passa entre as frestas da alma.
      Se minhas linhas lembraram o café coado da sua manhã, então valeu a pena cada verso plantado.
      Seguimos, sim, transformando migalhas de rotina em pão quente de poesia.

      Com gratidão,
      @opoetatardio — Pedro Trajano
      www.opoetatardio.blogspot.com

    • Edla Marinho

      Como ficou maravilhoso seu poema!
      E tão verdadeiro, tão simples e tão importante toda a trajetória descrita em brilhantes versos! Família normal .. real e não as de faz de conta, filtradas para a exposição nas redes da internet, essas redes que aprisionam a essência dos seres que deveriam ser apenas humanos
      Meu respeito e meu abraço!

      • opoetatardio

        Edla,
        Que alegria receber palavras tão generosas e sensíveis!
        Você captou com exatidão o coração do poema: a beleza do real, do simples, do que pulsa longe dos filtros e das vitrines virtuais.
        A família imperfeita, mas verdadeira — feita de afeto, tropeços e recomeços — é onde a poesia se esconde, esperando ser revelada.

        Com gratidão,
        @opoetatardio — Pedro Trajano
        www.opoetatardio.blogspot.com



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