Sim, eu sei exatamente onde você está.
Já morei aí — não de aluguel, mas de corpo inteiro.
Fui inquilino do caos,
respirei enxofre como quem busca ar,
e quer saber?
Talvez eu nunca tenha saído.
Só mudei o jeito de habitar o inferno.
Deixei de gritar.
Aprendi a andar em brasa com os pés descalços
e sorrir com a boca cheia de cinzas.
Virei a anedota do sapo fervido —
só que eu sabia que a água estava quente.
Fiquei mesmo assim.
Hoje, o inferno teme o meu nome.
É ele quem me deve noites.
É ele quem desvia o olhar.
Porque eu o conheço até onde ele próprio se perde.
Conheço o cheiro mofado das suas entranhas,
o timbre falso da sua promessa de alívio.
Sei que o fundo tem porão.
E já dormi lá.
Ele não tem mais trunfos.
Eu vi todos os seus disfarces —
inclusive aquele que usava o meu rosto.
Agora, rimos juntos.
Dividimos uma cerveja,
um gole de café requentado na amargura,
mas ele sabe:
a piada agora é sobre ele.
O problema de viver atolado na lama
é que a gente se habitua —
ao fedor, à textura,
ao calor insuportável da própria decomposição.
O problema de já ter cruzado os portões do abismo
é que o abismo também nos atravessa.
Um demônio cochila dentro de mim.
Não fala, mas respira.
Uma escuridão mora em silêncio,
fechada a cadeado num baú de ossos e promessas quebradas.
E às vezes…
às vezes é nesse baú que eu volto a morar,
quando o mundo aqui fora fica bom demais pra ser confiável.
Porque quem já conheceu o inferno
nunca volta inteiro.
Volta afiado,
volta sujo,
volta lúcido demais pra ser feliz.
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Autor:
Maicon Rigon (
Offline)
- Publicado: 29 de julho de 2025 17:28
- Categoria: Triste
- Visualizações: 3
- Usuários favoritos deste poema: Maicon Rigon, hanah
Comentários1
"Se olhar demais para o abismo, o abismo olhará de volta pra você", descreve muito bem isso. Pior do que estar no inferno, é se habituar a seus costumes cruéis e achar que o caos é o novo normal, quando na verdade não é... Parabéns, suas palavras foram tão precisas e fortes que eu não pude deixar de comentar!
Gratidão pelo feedback! Acredito que todos nós já passamos por situações difíceis. Difícil é tirar disso lição ou poesia. Eu optei pelos dois! Abração.
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