Chata

Thami

Agora tô aqui, chorando dentro do transporte, voltando da faculdade, segurando essa raiva que cresce, que se espalha no corpo como se ele precisasse explodir, devolver, cuspir pra fora de algum jeito. Seja na palavra, seja no gesto, porque meu corpo inteiro sente essa urgência, essa fome de descarga, de alívio. E só uma pessoa me afeta desse jeito, psicologicamente. Ele, que foi tanta coisa na minha vida, me olha e diz: você tá muito chata, questiona tudo. Como se eu tivesse virado alguém que incomoda demais. E eu só digo: sempre fui assim. Se algo não faz sentido, eu pergunto, eu questiono, eu fuço, eu insisto, porque só assim eu acalmo essa ansiedade dilacerante que me rasga o peito, que me aperta, que me come viva até quando eu tento não pensar em pensar.

E de repente volto pra infância. Lembro da babá dizendo: criança que pergunta demais é chata. Lembro do tapa na cara da minha mãe me chamando de chata porque eu não parava de me justificar. E entendo que minha voz, minha existência, meu jeito de ser, sempre foram chamados de chatos. Mesmo quando hoje dizem que não, mesmo quando tentam me convencer de que não é assim, o que ecoa aqui dentro são as vozes de quem um dia jurou que me amava, que nunca ia me abandonar, e mesmo assim... eu confiei.

 

E aí eu me pergunto... o que é, afinal, ser chata?

Chata é quem pergunta quando deveria aceitar calada.

É quem não deixa pra lá, quem não engole, quem não abaixa a cabeça.

Chata é quem não sabe sorrir praquilo que machuca, quem não sabe fingir costume, quem não faz sala pra opinião alheia.

 

É quem não sabe ser leve pra quem prefere o raso, quem não sabe ser simples pra quem quer tudo mastigado, encaixado, padronizado.

Me chamam de chata desde que aprendi a falar.

Primeiro porque perguntava demais. Depois porque sentia demais. Depois porque dizia o que pensava. Depois porque não aceitava respostas vazias, não aceitava ordens sem sentido, não aceitava me dobrar pra não ser desconforto pros outros.

 

Chata virou quase meu sobrenome, minha sentença, meu castigo, meu rótulo.

A mulher que não abaixa a cabeça, a menina que não aprendeu a se calar, a filha que não se dobra, a amiga que pergunta o que ninguém quer responder, a que desconstrói, a que observa demais, a que incomoda porque não finge não ver.

 

Ser chata, na real, é não saber performar o que esperam de mim.

É não saber ser boazinha o tempo todo, não saber ser a garota agradável, gentil, sorridente e satisfeita com pouco, satisfeita com migalhas, satisfeita com silêncios desconfortáveis, satisfeita com ignorar o que dói.

 

Ser chata é não conseguir passar batido.

É olhar pro mundo e ter a ousadia de não aceitar.

É ser aquela que estraga o rolê das certezas, que desmancha as verdades dos outros, que fere quem vive no conforto da própria alienação.

 

É aquele tipo de gente que os outros amam quando é conveniente, mas abandonam quando o incômodo bate.

Porque é gostoso ter alguém que te entende, que te ouve, que lê tua alma, mas é difícil quando essa mesma pessoa começa a perguntar: e você, quem você é? por que você age assim? por que aceita isso?

 

E no fundo... ser chata é só não aceitar uma vida que não me caiba.

É não saber viver no meio-fio entre me calar e me matar aos poucos.

É escolher, toda vez, mesmo que doa, mesmo que me custe, continuar sendo quem eu sou — inteira, crua, inquieta demais.

 

E talvez, se ser honesta comigo, se ser inteira, se não aceitar o pouco, se não me calar, se não me domar, se não fingir que não vejo, se não aceitar um papel que não me veste, se tudo isso é ser chata... então eu aceito. Eu assumo. Eu visto esse nome como quem veste a própria pele, porque não sei, não quero e não vou ser outra coisa.

 

  • Autor: Thami (Offline Offline)
  • Publicado: 30 de junho de 2025 01:38
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 6
  • Usuários favoritos deste poema: Melancolia...
Comentários +

Comentários1

  • Melancolia...

    Teu texto é um soco e um abraço ao mesmo tempo. Um espelho pra tantas que já foram chamadas de "chatas" por simplesmente existirem com intensidade, por ousarem questionar o que não faz sentido. O que você escreve toca fundo porque tem verdade demais, dor demais, coragem demais — e isso, pra muitos, é incômodo.

    Ser “chata”, nesse contexto, é ser consciente, é ter fome de sentido, é não aceitar a superfície quando se sabe que há um abismo a ser explorado. E é bonito — e brutal — quando você aceita esse nome como quem finalmente entende que não é defeito, é potência. É resistência.

    Obrigada por colocar em palavras essa luta silenciosa que tantas vivem. O que você escreveu não é só desabafo. É manifesto.



Para poder comentar e avaliar este poema, deve estar registrado. Registrar aqui ou se você já está registrado, login aqui.