Esta história nasce no interior do Ceará, de um zunindo de uma senhora que cantarolava sem palavras, com a garganta, enquanto ia da beira do fogão para vassoura, da vassoura para a pia de lavar louça, de lavar roupa. Da pia para as plantas, das plantas para garrafa de café, da garrafa de café para a porta frente, da porta da frente para o céu azulado sem nuvens.
Sentado na cadeira da sala alguém a observava naquele vai e vem. Um menino franzino, de olhos negros como a noite e a imaginação enfeitiçada como a lua. Parecia sempre atento ao silêncio do cenário árido e inerte ao tempo que fingia se arrastar.
Arrastou-se o tempo e agora olha para suas mãos, e com as palavras que brotam delas olha com olhos gigantes para dentro daquela casa e vê o desenrolar de um trecho de vida.
Para me sentir vivo saí de lá, para me sentir vivo para lá retorno. Nunca entendi essa vontade que eu tenho de viver, muito menos entendo as forças que me mutilam e me deixam sempre sentado de frente para a parede oposta a qual eu quero estar. O funil que se forma entre meus olhos e a lente da realidade desta parede que sempre me defronto é um reflexo mal delineado da parede que está atras de mim, coberta pelas lentes do imaginário onde os desejos se concretizam. Nela eu sou algo diverso do agora, nela eu me realizo. Se as forças do real insistem em me prender aqui, meu imaginário me prende lá… lá… lá…
Pensando sobre isso, olho para aqueles dois fios de cetim que amarrei nas grades da janela. Parecem livres ao movimento do vento, não fosse o nó que os sustenta nas pontas. Talvez seja a realidade o nó que me prende a este lado da parede enquanto o outro lado segue basculante ao movimento dos ventos imaginativos.
Resta-me agarrar a parte desatada, a que viaja ao vento - vento que afinal vem de outros ventos. Carregados de sensações, de partículas que meus olhos presos a este nó não pode contemplar, mas meu poros dilatados podem sentir.
Sinto que esse mesmo vento, que reverbera meus fios soltos, passou pelo sorriso de alguém, pelas lágrimas, pelo dia em que um outro alguém além de mim sentou em um banco qualquer, de uma cidade qualquer e, envolto pelos sopros, esqueceu-se do chão e elevou-se aos sentimentos. Nos libertamos um pouco quando o fio solto nos leva e voltamos sem saber quando nos levará uma outra vez, em mergulhos, submersos.
Escrevo porque quero esse mergulho. Lhe escrevo para que veja com olhos maiores, mais dilatados, aquilo que em outros tempos estava enevoado. E enquanto lhe digo faço de mim algo mais preciso, algo que agarra os fios soltos da história de uma vida e os dá corrente, como um rio.
Mas antes de escrever outros olhos me viram em cenários múltiplos e em cada um deles havia aquele menino franzino, sentado, com a boca cheia de melodias e no colo um violão. Enquanto eu escrevia olhando para a parede branca de uma folha de papel, ele cantava com olhos sempre quase fechados, na parede oposta sem forma.
Canção do Peregrino
Rio nos pés
Que se parte
Partícula arte
Presságio
Pressão
E no peito esse aconchego
Sou ar pro teu beijo
Ardente pulsão
Vivo sem eira nem beira
Despenco da serra
Pedra
Perdição
Sou um forasteiro da alma
Jornal sem palavras
Tenho um coração
E no peito esse menino
Arroio arrepio
Totalmente em vão
Sol e lua
Noite escura
Sem pressa
Na chuva
Ao som do trovão
Nesse mundo esperto
Disperso
Desperto um verso
Tecendo paixão
Vivo balançando a cabeça
Nunca tive mesa
Não digo que não
E se passa nesse caminho
Um total peregrino
Te dou meu coração.
E ouvindo o seu canto, meu olhar caiu sobre outra parede, sobre outra janela e me saíram estas imagens que traduzo em palavras…
Na parede do quarto, em cima dos traços que figuravam aquela jovem senhora de cabelos lambidos, estava a fotografia da igrejinha de minha terra. Lá aprendi com meu irmão que tudo pode ter mais de um significado. Enquanto a música bucólica exigia do público palmas e o balançar das mãos. Aquele menino com cabelo de índio e sorriso sempre exagerado dizia: Bim, agora mata mosquito… Agora abana o mosquito.
Por dentro eu ria, por fora dizia para ele deixar de ser peralta. Dar muito significado as coisas é pecado. Me disseram isso e naquela época acreditei. Hoje sei que pecado é o contrário. Ai de mim se não tivesse do (in)significante feito significados. Pois me empurraram ladeira abaixo e pelo visto eu já estava cansado de viver nas bordas. Enquanto caia, o vento ondulado como nuvens, entrava por um ouvido e saia pelo outro com uma voz. Lembro-me que disse:
Ei você que habita esse corpo
Escondido nesse emaranhado de ossos
Ei você que mora nessa mente
Que velocidade é essa?
Para que sente?
Nessas terras do teu chão
Se desbravadas
Bem exploradas
Quem sabe até um tesouro perdido haja
De um menino da ilha
Ilhaeu…
Desde essa época sigo caindo, ou subindo. É difícil saber o sentindo quando faltam pontos de referencia. Para uns a estrada vai, para outros volta. Mas no fundo eu sabia que algo trazia carimbado nessas células, algo que de todo me era incompreendido e uma hora a tinta sublimou. Deve ter sido aquele mar de lágrimas.
- Era teu ou era do teu irmão aquele apelido de manteiga derretida?
- Agora é teu!
Sei que inundei muita terra pelo caminho. Com essa água toda se enche-se um boqueirão, sussurrou minha avó no meu ouvido. Ela tinha essa mania de soprar palavras ao vento e aquilo ecoava até chegar aqui e depois seguir ressoando por uns dias. Uma parte eu até conseguia traduzir, transformar em palavras, música. Outras vezes eu silenciava o pensamento, ocupava as mãos e costurava, pintava ou ficava inerte ao tempo, olhando o firmamento enfeitado de astros.
Precisamente eu fazia isso quando os ecos emergiam como gritaria na voz de um senhor de pele morena e cabelos grisalhos: "Ô menino besta!”. Dizia quando me via correndo pela casa cheio de palavreado. Quando eu dançava, quando cantava e quando sorria e quando me movia.
Foi por isso que eu fechei a porta e nunca mais. Saí de casa cedo, aprendi a ser filho do vento. E falo isso por um costume de menino que me acompanha quase como antídoto para as horas de vertigem. Corro para qualquer lugar sem teto, sem parede e busco a direção do vento que passa por entre os dedos e vai para lugar nenhum.
É que na cabeça dele o ódio havia preenchido as dobras do cérebro. E pense num sentimento difícil, remói tanto o miolo que no final sobram as mesmas palavras. A língua enrolava sempre o mesmo caminho e eu ouvia de hora em hora junto ao sino da igrejinha:
“A culpa dele ser assim é da avó, vive ensinando esse menino a costurar roupa de boneco. Donde já se viu boneco com roupa?! Já tá na idade é de brincar com boneca, bonecas… Que diabo de plantar, de cozinhar… De comprar CD para ele viver dançando e cantando por ai…”
Deve ter sido culpa dela mesmo. E creio que fez um trabalho muito bem feito. Coloríamos as tardes embranquecidas pelo excesso de sol. Cada um no seu silencio empurrando com os pés a cadeirinha de balanço que tocava uma melodia discreta, mas que determinava o ritmos dos nossos dedos na agulha. Ela fazia um ponto cruz, eu um caminho de rato. No final riamos do rumo incerto que havia em quase tudo que nos cercava. Riamos do leite no fogo que esperava atento nossa desatenção para virar espuma e entupir as bocas do fogão.
De rabo de olho, esperávamos no quintal o cavalo esconder-se dos desatinos de Marileide que o perseguia com uma tesoura. Dizia que era preciso manter a crina num estado rente a pele. Na verdade, o que havia por detrás da cortina de seus atos era o excesso de energia que acompanha a mocidade de todo ser vivente e na falta do fazer fazemos aquilo que nos dá na telha. Depois que o cavalo cumpriu seus anos e foi velado sem crina na beira de um rio, ocupamos suas mãos com linha e agulha e fazendo crochê ela ria tanto daquele tempo de menina que seu rosto avermelhava, e ela tirava os óculos para secar as lagrimas e franzir a testa. Quem não olha para trás e rir de si mesmo? E chora de si mesmo? Ela fazia os dois ao mesmo tempo.
Eu lembrava daquele tempo numa tarde qualquer. Dia não era completamente, por causa das nuvens pesadas no céu. Fui atraído para o quintal por razões ainda desprovidas de explicações para mim. Havia magnetismo nas gotas que caiam e eu fui.
Não demorou muito, tirei a roupa meio molhada, senti a grama empapada sob meus pés. Naquele momento também começou a chover dentro de mim, e a minha chuva se confundia com sua. Eu fechava os olhos e tinha ali no escuro das pálpebras fragmentos de imagens. Sons de sorrisos na chuva, de passos batendo nas poças de água. A atmosfera dos banhos de chuva que tomei quando era menino inundou o momento. Lembrei de quando você ainda vivia entre nós e também ia para chuva, de biqueira em biqueira, buscando a sensação de cada uma, buscando uma para ser sua e outra para aquele balde enorme preto que serviria para armazenar a água que era sempre escassa.
Nuvens passageiras, pássaros voltaram a cantar e eu também. Nuvens foram dar voltas, um dia elas voltam. Dizem que a despedida dura toda uma vida. Vez por outra eu me despedia um pouco mais com um violão no colo e uma voz desafinada ocupando as tardes desocupadas.
Hoje na casa de dona Maria tem café
Hoje na beira da estrada, Maria bate o pé
E o mundo encanta, ela balança a ponta
Olé mulher rendera, tu me ensina a fazer renda…
Não consigo delinear o que passava por entre meus emaranhados quando saí de casa. Pois quando dei por mim já estava com o motor do ônibus no ouvido. E minha mãe no filme da janela enchendo o balde preto com uma chuva de lagrimas. Mas eu queria aquele mundo que passava nas telas. Naquela época televisão tinha bunda, hoje é retinta. Menino repentista, soprou minha avó no meu ouvido. E eu ouvi sua gargalhada.
Nem sequer lembro o que levava na mala, nem se mala levava, talvez uma mochila com livros. Eu dizia que iria estudar, trabalhar, encontrar o que ali não havia. Quem sabe eu sai para sonhar de olhos abertos, sonhos ingénuos, de um alguém muito atento as poucas representações que tinha no mar daquela imensidão de sentimentos dentro do peito que sempre foi meu comandante.
Em cada passo que eu dou
Um passo sempre há
Um novo passo que eu dou em falso
Sem notar
E quando ando eu sinto o vento
Só eu sei
Que quando sinto o arrepio do tempo
Vai passar
Há um viajante no meu bolso
Há um viajante no meu corpo
Há um navegante
Que quer estar
De malas prontas
E sempre pronto para andar
Na janela do ônibus brotava aquela paisagem seca, tinindo no sol do meio dia. Não tinha uma nuvem para servir de guarda-sombra, o céu completamente desnudo ao vento seco nos segundos que se alargavam. Era tudo espanto e era um espanto contido. Esse sentimento de partida me acompanha até hoje, o sertão cearense vive em mim, as lagrimas cálidas de sol caem no chão imenso do deserto. Ande por onde ande levo esses pés rachados que aparentemente não mostram um calo.
Minha avó tinha lascas, fendas nos seus pés calejados, as mesmas fendas da terra. Nosso ritual matinal era coberto pelas cócegas que ela fazia em meus pés até me despertar e dar-me conta de correr para a escola. Às vezes, depois de rirmos, eu pelo efeito do movimento dos seus dedos na sola dos meus pés e ela pelo efeito da minha risada aporrinhada, sentávamos um ao lado do outro e eu já sabia ela iria dizer - Pés finos, não tem um calo. Hoje trago os dedos calejados das cordas do violão e lembro dos teus pés rachados, do teu silencio ruminado em gestos que hoje traduzo em palavras de despedida.
Pela lentidão e pelos excessos de espanto eu viajo no sono de uma poeira cósmica que dá voltas pela sala e ao redor da minha cabeça. Meus pés entram na dança das palavras que saltam entre pontos luminosos o tempo adquire outro ritmo. Uma vida inteira cabe em um segundo de rastro espiralado entre estrelas. Voo longe quando me entrego a escrita, meu corpo fica extasiado como que deslumbrado pela beleza do firmamento. Pela noite que trago por detrás das pálpebras e da poltrona aponta para o universo.
Eu sei que esse emaranhado que carrego por detrás dos olhos negros um dia encontrará um sentido que desbotará sempre em um caminho desgovernado pelos sentidos que governam.
Corro por léguas de pensamentos e pelo comprimento cumprido do fio fico aninhado ao precipício de estar e fugir. Pois as palavras sempre me escapam por novos e renovados rumos. Sobram-me os emaranhados soltos nos espaços antes ocupados, agora acinzentados. Sobra-me o desvelar nas incertezas da ausência. Restam-me os horizontes e as pontes a céu aberto. Resta-me a espera pelo cair da noite e da lua que me situa na condição própria de cada sujeito.
…
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Autor:
Binho (Luiz Herbet Cezario) (
Offline)
- Publicado: 9 de março de 2025 10:06
- Categoria: Não classificado
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