A MISERICÓRDIA TEM MÃOS HÁBEIS E UMA BOA MIRA
(Sem nome, sem lei e sem coração. Se encontrar com o tropel de seu cavalo, reze para não ser a encomenda.)
O vento cortava como lâminas de areia. O sol morria no horizonte, tingindo tudo de ferrugem. O deserto guardava os gemidos dos que caíam nele.
O primeiro tiro fez o homem tombar de joelhos. O segundo era o que matava
(ele sabia disso),
mas deixou que a sorte decidisse o golpe da misericórdia.
O ferido rolou na areia quente, ofegante.
Os olhos arregalados denunciavam o medo de quem sabe que a morte nem sempre é rápida.
O cavaleiro sem nome o observou por um instante. Depois, puxou as rédeas e seguiu.
O tropel do cavalo sumiu na poeira.
A próxima vila era um amontoado de pó e miséria. O apito do trem das seis ecoava ao longe, indiferente a quem ficava para trás.
No salão, o cavaleiro encontrou um pouco de esquecimento no fundo de um copo.
— O que tiver de mais forte.
A voz saiu rouca, cansada. Nem ele sabia se era a poeira ou os dias pesando.
Foi quando sentiu aqueles olhos.
Na penumbra, uma mulher o observava, quieta.
Não trocaram palavras que importassem. Apenas tragos, toques e silêncios abafados no quarto de uma hospedaria barata.
Por um instante, o mundo pareceu parar.
Mas o mundo não para.
A dor veio no meio da noite, ardida, profunda. Algo queimava por dentro, mais forte que qualquer ressaca.
O suor escorria frio. Os dedos tremiam ao agarrar o lençol sujo.
Ela o olhava, sentada na beira da cama.
E então tudo veio.
A infância cheirava a terra molhada e pão quente.
O riso da mãe enchia a casa, e ele acreditava que o mundo era simples.
Um menino sem pecados, correndo descalço, colecionando pedras lisas no bolso.
Depois veio o primeiro amor.
A garota de vestido azul, com cheiro de lavanda e os olhos cheios de promessas que ele nunca soube cumprir.
Ele a beijou atrás do celeiro, sem pressa, como se tivessem todo o tempo do mundo.
Mas o tempo engana.
Vieram os amores roubados, as bocas que nunca lhe pertenceram de verdade.
Mulheres que sussurravam seu nome no escuro, mas que, ao amanhecer, pertenciam a outros.
E as paixões ardidas, consumidas entre lençóis e álcool barato, tão intensas quanto fugazes.
O primeiro homem que matou tossiu sangue nos próprios dedos, igual ao pai dele quando adoeceu.
Foi aí que ele aprendeu: matar e morrer têm a mesma cor.
Depois disso, vieram os anos empoeirados.
Mais corpos, mais promessas vazias.
Moedas ganhas e gastas rápido.
A solidão misturada ao cheiro de cigarro e suor barato.
O deserto engoliu tudo. Engoliu sua fé, engoliu seu nome.
Agora, o deserto vinha engolir ele também.
Tentou falar, mas só conseguiu soltar um gemido.
Os olhos, antes cheios de raiva, agora só tinham cansaço.
E, pela primeira vez em muito tempo, sentiu medo.
Quando a manhã chegou, o quarto estava mudo.
A mulher se levantou, vestiu-se sem pressa.
Passou os dedos pela garrafa caída no chão, virou-a devagar, observando o líquido derramado como se já soubesse o final.
Depois, foi até ele.
Tocou sua pálpebra com a ponta dos dedos e fechou seus olhos num último ato de piedade.
Então saiu, sem olhar para trás.
Lá fora, o sol subia no horizonte, tingindo uma nova aurora de ferrugem.
E no desolado deserto, ainda se pode ver uma lápide sem nome, apenas com os dizeres:
"Aqui jaz o mais cru e visceral dos homens.
Morreu sem dever a ninguém,
nem mesmo à própria redenção.
Fez do aço seu santo devoto,
e da pólvora, sua ironia.
No fim, agonizou suas dores,
saboreando o preço de cada uma.”
THE END
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Autor:
C.araujo (Pseudónimo (
Offline)
- Publicado: 22 de fevereiro de 2025 18:18
- Categoria: Não classificado
- Visualizações: 6
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