A tampa da caneta

Teobaldo Dias

A tampa da caneta que perdi ontem não voltará.  
E, no entanto, sinto que ela me pertence mais agora do que quando a segurava entre os dedos.  
Ontem ela era só uma tampa, um pedaço de plástico sem biografia.  
Hoje é um monumento à ausência.  
E o que é a vida senão uma sucessão de tampas de caneta desaparecidas?  

Perdi tantas coisas — e algumas, sem nunca ter tido.  
Onde estão os peúgos que usei quando tinha cinco anos?  
Onde está o barulho da fechadura a girar quando eu chegava da escola?  
Onde está a minha antiga caligrafia, torta, incerta, com letras que não se encaixavam bem umas nas outras?  
Onde está o cheiro do livro novo que abri pela primeira vez num inverno frio,
onde está a voz do velho mendigo que cantava na esquina e que um dia desapareceu,  
onde está o tempo que pensei que teria,  
onde estou eu, aquele que fui quando ainda não sabia que um dia escreveria este poema?  

Se me perguntassem: O que foi a tua vida?  
Eu poderia responder com todas as banalidades do mundo.  
Foi um café que ficou frio antes que eu me lembrasse de bebê-lo,  
foi uma lista de compras esquecida no balcão do supermercado,  
foi o tilintar de um copo colocado na mesa com mais força do que o necessário,  
foi um riso que explodiu no meio de um dia monótono e depois desapareceu,
foi o pó que se acumulou nos livros que jurei que leria,  
foi a palavra que esteve na ponta da língua e que nunca saiu.  

Mas que importa?  
A tampa da caneta que perdi ontem nunca mais voltará,  
e por isso mesmo tornou-se eterna.  
Tudo o que se perde entra num reino onde a perda não existe mais,  
onde o tempo não sabe dissolver os instantes,  
onde todas as tampas das canetas, todas as moedas caídas nos vãos dos sofás,  
todos os lápis mastigados distraidamente voltam a existir num esplendor irônico,  
mais vivos agora que foram esquecidos.  

E eu?  
Se um dia eu também for esquecido,  
se o mundo seguir indiferente à minha ausência,  
se ninguém se lembrar da minha voz,  
do meu jeito de andar, do som dos meus passos,  
do meu sorriso às vezes fingido,  
do modo como eu mexia as mãos enquanto falava,  
do tom exato com que dizia “bom dia” a estranhos na rua,  
se tudo isso desaparecer como desapareceu a tampa da minha caneta,  
será que terei finalmente me tornado eterno?  

Ah!, mas o que é eterno, senão aquilo que já não nos apoquenta os pensamentos?  
O que é eterno, senão aquilo que um dia foi real o suficiente para doer?  
O que é eterno, senão um desejo nosso esquecido que continua a se propagar na imensidão do nada?  

Perdi uma tampa de caneta ontem.  
E, de repente, a vida inteira coube nesse facto.

  • Autor: Teobaldo Dias (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 16 de fevereiro de 2025 10:25
  • Categoria: Reflexão
  • Visualizações: 4


Para poder comentar e avaliar este poema, deve estar registrado. Registrar aqui ou se você já está registrado, login aqui.