#5 - ENTRE O ABISMO E A ESPADA - CAPTULO 1: A CAIDA

Lua em Libra

O tempo havia perdido todo o significado. Não sabia mais se eram dias, semanas ou meses desde que chegamos ali. A caverna era um refúgio, mas minha mente estava em pedaços. Cada dia que passava, as perguntas em minha cabeça apenas se multiplicavam.


“Quem nos colocou aqui? Por quê? E se isso não for apenas um lugar... e se for um julgamento?”


Não havia respostas, apenas as luzes que continuavam a transformar aquele lugar em algo mais, algo que transcendia o pesadelo que vivíamos. Tudo o que eu podia fazer era esperar. E lutar.


Eu voltava da caça, arrastando um dos menores predadores que havia abatido. Seus olhos vidrados ainda brilhavam com aquele tom amarelo-ácido, como se algo dentro dele se recusasse a morrer. Enquanto eu o depositava no chão da caverna, senti novamente aquela presença.


— Você está mudando, sabia? — a voz ecoou dentro da minha cabeça, mas parecia estar ao meu lado. Não olhei. Era inútil.
— Quem é você? — perguntei, os olhos fixos no corpo retorcido da criatura.


— A pergunta certa seria “o que você está se tornando?” — respondeu, com um tom de voz quase provocativo, mas familiar demais. — Você sente, não sente? Cada vez que morde a carne deles, cada vez que luta para sobreviver, algo dentro de você desperta.


— Isso não importa. Eu faço o que é necessário para continuar vivo.
— “Continuar vivo”? Ou está apenas se adaptando? Você não vê? Esse lugar está te moldando. A caverna, as criaturas, até mesmo ela... Tudo aqui está transformando você.


Fiquei em silêncio. A criatura morta aos meus pés parecia menor agora, como se perdera o significado. Meu olhar se desviou para o fundo da caverna, onde ela ainda dormia, banhada na luz que emanava do próprio corpo.


— Não me importa. O que quer que esteja acontecendo, eu ainda sou eu.
A voz riu, baixa e sombria, como se zombasse da minha teimosia.


— É o que todos dizem, até olharem no reflexo e verem o que realmente são. Mas não se preocupe. Estou aqui para te lembrar.
A risada desapareceu, mas deixou uma sensação estranha, como o eco de algo que eu não conseguia identificar. Por um momento, o silêncio voltou a dominar a caverna, quebrado apenas pelo gotejar ritmado da água e o som distante do vento que assobiava na entrada.


A criatura aos meus pés parecia menor a cada instante. Passei a faca por sua pele áspera e comecei a cortar, mas minha mente estava longe. O que eu estava me tornando? A pergunta reverberava, mas parecia não ser minha.


"Isso não importa", pensei, ou talvez fosse algo além do pensamento. Minhas mãos continuavam o trabalho mecânico, enquanto minha mente tentava empurrar tudo para um canto escuro, o mesmo canto onde eu enterrava cada conversa com a Sombra.


"Está vendo?" A voz ecoou de novo, mas dessa vez mais fraca, como se fosse um reflexo distante.
Ignorei.


Eu sabia que ela tentaria mais uma vez, mas concentrei-me na carne que eu cortava, nas fibras que se separavam sob a lâmina, no cheiro metálico que tomava o ar. Minhas mãos eram precisas, metódicas. Esse era o único controle que me restava, e não estava disposto a entregá-lo.


Lá do fundo, o som da respiração dela, lenta e constante, parecia mais alto que antes. Olhei por reflexo, apenas por um segundo. A luz ao redor dela tremulava, ou talvez fosse apenas minha visão turva pelo cansaço. Voltei a olhar para o trabalho à minha frente.


"Você acha que pode me ignorar?"A voz veio mais uma vez, mas desta vez parecia mais... dispersa. Não era tão clara, tão presente. Isso me deu uma estranha sensação de alívio. Continuei a cortar, despedaçando a carne e separando as partes que podiam ser consumidas.
Cada vez que a Sombra falava, era como uma onda se aproximando. Mas ondas se dissipam.
"O que você está se tornando..."
O som desvaneceu-se antes que terminasse a frase.


Sorri sem perceber, um sorriso breve e vazio, mas suficiente para me lembrar de que, enquanto minhas mãos pudessem trabalhar, enquanto eu pudesse continuar a caçar, a sobreviver, eu não tinha tempo para enigmas.
Lá no fundo da caverna, ela se mexeu, como se respondesse àquele pensamento. Por um instante, o mundo pareceu mais silencioso do que nunca.


Talvez eu estivesse mudando.


Mas eu faria isso sozinho.

  • Autor: Lua em Libra (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 24 de dezembro de 2024 15:43
  • Categoria: Espiritual
  • Visualizações: 5


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