Quando a gente se perde de si

Artu_rr

Eu estava sentado no banco de concreto do parque, próximo a um lago, depois de uma caminhada rotineira. Foi lá que a vi, aquela escritora famosa. Qual era mesmo o nome dela? Não lembro. Há anos atrás, li um livro dela que falava sobre o luto, anos após, nunca a vi escrevendo mais nada, nem dando uma reportagem sequer. Lembro-me sim que era muito famosa e que na época o livro vendeu muito (Claro, ele era excelente). Ela estava sozinha, mergulhada num vazio que parecia maior do que o parque inteiro. Os olhos delas estavam em um tom peculiar, desfilando entre o azul e o verde. Sempre fora bela, mas a luz do fim da tarde, parecia mais ainda.

Ela sentou-se num banco afastado, o rosto voltado para o horizonte, mas os olhos fixos em um lugar que ninguém podia precisar ao certo onde era. Reconheci-a de imediato; era impossível não reconhecer. Seu livro havia me marcado profundamente pela sua força transposta em pouquíssimas linhas, mas hoje ela parecia com um olhar tão perdido.

Foi então que o rapaz apareceu. Jovem, talvez uns vinte e poucos anos, com um brilho nos olhos, daqueles que a gente fica quando vê alguém que gosta. Ele hesitou, mas criou coragem e caminhou até ela. Eu não conseguia ouvir tudo no início, mas a curiosidade me fez me aproximar o suficiente.

— Com licença, é você, não é? Fernanda, a escritora. Desculpe, mas eu sou um grande fã. Seus livros mudaram minha vida.

Ela ergueu os olhos lentamente, como quem retorna de muito longe. Um sorriso muito breve, quase imperceptível aparece em seus lábios.

— Obrigada. Isso é bom de ouvir.

— Você parece… triste.  Ele disse, e depois corou. — Desculpe, não quis ser indelicado.

— Não faz mal. — Ela respondeu. — Às vezes, é mais óbvio do que eu gostaria.

Ele hesitou, mas continuou:

— Faz tanto tempo que você não publica nada... Desculpe novamente, mas é que seus livros sempre pareceram tão vívidos. Eles me ajudaram em um momento muito importante da minha vida, quando minha irmã faleceu. Fico muito feliz em vê-la pessoalmente. Você está bem?

Ela sorriu de novo, mas dessa vez parecia haver algo quebrado ali.

— Eu estou em luto.

O rapaz franziu o cenho, claramente confuso.

— Luto? Meus sentimentos… Não devia tê-la incomodado.

Ela respirou fundo antes de responder.

— Está bem, garoto. 

A tensão estava palpável. Se fosse eu no lugar, não saberia o que dizer. Afinal, acho que não tem muito o que dizer a alguém que está de luto, apenas respeitar o espaço e tempo para que a dor vá se diluindo nos dias que passam. Aprendemos a viver com o luto, ele não cessa definitivamente, não "passa".

— Quem era? — Ele perguntou, com cuidado. — Quer dizer, se não se importar em falar sobre isso.

Ela olhou para ele, os olhos cheios de algo que eu não conseguia definir. Uma mistura de dor e solidariedade.

— Era a pessoa mais próxima que já tive. 

Eu e o jovem talvez tivéssemos tido a ideia errada, quando ela respondeu, ficamos perplexos.

 — Era eu mesma.

Ele piscou, atônito.

— Como assim? Você… perdeu a si mesma?

Ela assentiu devagar com a cabeça, olhando para os pés cruzados embaixo do banco.

— Perder-se de si mesmo é um processo lento. Começa com pequenas coisas: você ignora suas vontades, silencia seus desejos, deixa de lado aquilo que te faz sentir vivo. Deixa de acreditar que suas histórias importam, que suas palavras podem fazer diferença. E então, um dia, você olha para o espelho e não reconhece mais quem está lá. Só resta um vazio. E é esse vazio que me acompanha agora. Ele me lembra quem eu costumava ser quando era criança, jovem, ávida, imortal, e quem não sou mais.

— E você sente muita falta de quem era? — Ele perguntou, sentindo a voz trêmula da escritora.

— Sinto. Principalmente no final da tarde. Era quando eu vivia mais, quando as palavras fluíam como se fossem parte de mim. Agora, é o horário em que a ausência pesa mais.

O rapaz ficou em silêncio, tentando absorver aquilo. Seus olhos se encheram de lágrimas, e ele finalmente deixou escapar:

— Eu nunca pensei que fosse possível sentir luto por si mesmo.

— E é. — Ela respondeu, com uma assertividade que se sentia. — É o luto mais silencioso de todos, porque ninguém pode consolá-lo. É você, sozinho, tentando encontrar o caminho de volta para si. Às vezes, eu tento escrever, pensando que as palavras possam ser uma trilha. Mas nem sempre funciona. As vezes, faz parte do hábito. Escrevo o que sinto, o que vejo, o que penso, pois é só escrevendo que consigo expressar esse sentimento indefinível que eu sinto. Vazio que deu morada em mim. 

O rapaz não conseguiu segurar as lágrimas. Ele chorou, e eu, que assistia de longe, senti algo se quebrar dentro de mim também. Talvez porque, de algum modo, aquelas palavras também fossem minhas. Talvez porque, como ela, eu também estivesse em busca de mim mesmo, sem nunca ter percebido.

A escritora ficou em silêncio novamente, mas dessa vez não parecia estar sozinha. E o rapaz... bem, ele não disse mais nada. A noite chegou, a escritora se retirou do parque e seguiu seu rumo. Meses depois ela faleceu, porém sempre que leio um livro dela, me vem a imagem dessa pessoa forte silenciosamente machucada. Eu a admiro muito, hoje entendo que quando a gente perde a si mesmo, é difícil suportar.

  • Autor: Artu_rr (Offline Offline)
  • Publicado: 22 de dezembro de 2024 21:47
  • Categoria: Reflexão
  • Visualizações: 5
Comentários +

Comentários1

  • ㅤㅤ

    Incrível, texto marcante. Já me perdi de mim mesma, vivia tentando me encontrar ou pelo menos voltar a ser aquela versão que tanto gostava, mas me dei conta de que aquela versão já não existia, aceitei isso. Passei um tempo sentindo falta dela e fazendo coisas que me sentia conectada daquela "eu" que um dia fui, as vezes conseguia sentir a energia dela por um instante e me sentia bem. Eu simplesmente aceitei que ela não existe mais, e que agora eu sou uma nova versão, uma versão diferente mais madura e sábia do que aquela que um dia fui.



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