“Duas almas habitam no meu peito, uma da outra separar-se anseiam: uma com órgãos materiais se aferra... outra quer a força elevar-se às alturas de sua excelsa origem.” (Fausto-Goethe)
Já vai longe o tempo em que a poesia se curvava ao rigor da matemática, versos alexandrinos, pacotes perfeitos de pensamentos, sílabas na ponta dos dedos. De repente a escrita rompeu os grilhões dos senhores da técnica e se tornou a arte mais simples de todas, sendo suficiente uma caneta ou editor de textos, um pensamento e nada mais. Regras? Perguntem a Saramago como conseguiu ganhar um Nobel escrevendo um livro praticamente sem respirar, inimigo visceral das vírgulas, fôlego da língua portuguesa. Em todas as outras artes, noções de técnicas específicas são de extremo valor no auxílio da criação e improvisação no ato de pintar, esculpir, cantar, fotografar, representar. No ato de escrever conta o talento de se expressar e seduzir com sua expressão. Manter o leitor no texto e convence-lo que vale a pena conhecer o final. A fluência com que as palavras se derramam e a singularidade de como se arrumam como um cubo mágico de letras para que ideias e sensações comuns a todos os seres humanos possam surpreender, o mesmo visto de forma diferente, simples, verdadeiro, natural e original. Proust foi um bom exemplo disso, um arquétipo na criação de metáforas, Bulgákov, e o seu lirismo autêntico, sem um traço sequer de pieguismo, a náusea da literatura.
Por ser fácil e de forma literal estar a mão, a arte de escrever atrai um número incontável de candidatos a escritores, processo alavancado pelo surgimento das redes sociais, e eis que emerge nesse século um fenômeno surreal, único na história da humanidade: de repente o número de escritores parece imensamente maior do que o de leitores. De que forma então um escritor/poeta poderá saber se seus escritos de fato possuem os adjetivos daquilo que se costuma chamar de arte? A opinião dele próprio se caracterizaria como sério conflito de interesses. Seria então o julgamento atencioso dos colegas escritores/poetas e amigos, aqueles que comparecem ao lançamento de seus livros ou que deixam gentilmente palminhas entusiasmadas nas redes sociais? O artista seria um ingrato se não se sensibilizasse com esses sinais de estima, mas se assim não fosse certamente não seriam colegas nem amigos. Quem sabe as editoras, pena que já não vivemos nos tempos áureos da Galimard. Um amigo meu conheceu certa feita o corpo editorial de uma dessas famosas editoras, e surpresa, a idade aparente das componentes do grupo sinalizava ao menos que Saint-Exupéry haviam lido, mas não Terra dos Homens ou Piloto de Guerra, provavelmente e exclusivamente o Pequeno Príncipe. Numa Feira do Livro dessas, no estande da editora, esse mesmo escritor fez par no seu horário com uma autora de um manual para cuidados de pets. Mais tarde desistiu de publicar quando foi chamado de “cliente” pela editora-chefe, ato falho imperdoável, indelicadeza para alguém que se alimenta de sonhos. Desse modo as editoras também não são uma boa referência para um julgamento confiável.
Kafka, considerado por muitos o maior autor da literatura ocidental só se tornou conhecido dois anos após sua morte. Bulgákov somente trinta anos depois. Joyce cansou de ter seus escritos recusados (perfeitamente compreensível para quem já tentou ler Ulisses), Proust teve o primeiro volume de sua obra-prima (Em Busca do Tempo Perdido) recusado pela própria Galimard. Anos depois ganharia o Nobel. O artista, portanto, não deve desanimar, quem gosta de escrever não vai parar de escrever pelo dilema se é joio ou se é trigo, mas terá que se resignar com o fato de que o único juiz infalível para sua obra será a eternidade.
- Autor: Vênus (Pseudónimo ( Offline)
- Publicado: 16 de dezembro de 2024 23:28
- Categoria: Reflexão
- Visualizações: 3
Para poder comentar e avaliar este poema, deve estar registrado. Registrar aqui ou se você já está registrado, login aqui.