EU CONTINUO

Carlos Lucena

EU CONTINUO

A esperança já anda meio turva
Não sei bem se os olhos ou a esperança.
O contorno da estrada já está sinuoso e curvo
E os caminhos já não são tão largos
Mesmo assim eu continuo
Mesmo que seja no mais profundo divagar.

A radicalidade do tempo
O julgamento dos anos
A imparcialidade das horas
Transgride o limiar do que estar feito
E o que já estar feito
Contornou o desenho da obra.
Mas eu continuo...

Continuo a caminhar nas pedras
Também a colher flores
Com alguma vaga intenção 
Mesmo que as pedras estejam presas em suas minas
E as flores em seus caules
Mesmo que o espaço para voar já se estreite
E se limite apenas para um encontro com um furtivo raio de sol.
Mas eu continuo...

Não estou débil nem insensível
Mesmo que não esteja tão visível.
Não estou alheio e estou vendo o mundo
Não como vi antes
Vejo como vejo agora
Já não é um olhar
É uma visão.
Retina já meio fosca 
Globo sem luz
Mesmo assim, ainda continuo.

Não planto mais tanta semente
A colheita assim é restrita
Tudo é somente suficiente
Pesa a aridez do solo
Os frutos são acanhados
As flores continuam lá 
Sem muito viço
Mas estão la 
Mas são apenas flores...
E por isso ainda continuo...

Amigos? Estão a caminho alguns nas  pedras
E outros já estão sob elas.
Não há mais tantos encontros
E os abraços diminuíram
E outros abraços estão distantes
As ternuras ficaram nas lembranças
Com as carícias que já não são mais tão exigentes
Porque a volúpia de agora
Não carece mais do corpo
Mas eu continuo...

Eu continuo na insistência
Dos casos e dos acasos
O corpo diz que não
Mas a incoerência da alma diz que sim.
O começo ficou bem longe
E essa mesma consciência 
Me faz lembrar do fim.
O último slide ainda não foi editado
O último ato ainda não foi escrito
É por isso, que ainda continuo...

Amores? Mas do que sentimentos, são histórias
E deveriam mais do que emoção, ser razão.
Agora, com um pouco de sentimento
Para nunca deixar de ser razao
E de ser puramente conclusão 
Conclusão das coisas que doeram
Daquilo que o sonho arremediou
E foi inaltecido pela ilusão.
E assim eu continuo...

Corpo? Vestimenta da alma.
Carne em transgressão 
Da volúpia que o tempo diluiu
Nas veias contadas na história de antes
E hoje a volúpia é apenas o contorno 
Das ânsias e desejos que agora são contidos.
Mas eu continuo...

Sou corpo ainda
Mesmo que as mãos estejam trêmulas
E as falanges estejam inflexíveis
E anatomicamente hirtas em suas articulações 
Ainda que as pernas tropeçam em si mesmas
E os joelhos sucumbam em suas rótulas 
Entre o movimento e a paralisia
No entanto ainda continuo...

Tudo é paralelo
A libido de ontem já na queima
Antes o fogo expresso que ardia
Hoje a perplexidade diante daquilo que ocorreu um dia.
A fulgacidade não me compraz os vicios
E nem me importo com a importância dos ofícios
Porém, eu ainda continuo...

Já não sou mais apenas corpo
Mas eu continuo
Órgãos e vísceras se articulam em desejos mínimos 
No entanto, sou mente
Sou completamente mente
Inteiramente mente
Mesmo que seja fisiologicamente diferente.
Sou voz trôpega
Sou audição reduzida
Sou a visão turva da retina
Mas, eu sou mente
Inevitavelmente eu sou mente
E por isso que ainda continuo...

O relógio estar a contar o tempo
Dias e noites são minutos
E espero o trem
O trem que vai e que vem
Trem de ida
Trem de partida 
Levando uns para lá 
E trazendo outros para a vida.

  • Autor: Carlos (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 18 de novembro de 2024 15:27
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 3


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