MINHA MÃE
Minha mãe morreu pela segunda vez e definitivamente nos meus braços. Acho que ela planejou isto. Ou Alguém planejou. Havia sofrido a primeira morte quando meu pai se foi após cinquenta e dois anos unidos em um casamento feliz. Depois disso se entregou ao envelhecimento e ás doenças. Primeiro um tumor de retroperitônio que decidimos sabiamente não operar. Não deu em nada. Graças a Deus. Depois um tumor altamente agressivo de mama que foi resolvido mais uma vez com a Graça de Deus e dos médicos que a trataram. Por fim uma doença neurológica degenerativa foi tirando suas forças. Não conseguia mais andar sem que não caísse. Caiu de todas as formas que alguém pode cair, mas assim como na vida dela, malgrado arranhões, equimoses e hematomas levantava sofrente e gemente, mas incólume. Passou a ter dificuldade em falar, com isso perdeu o comando da família o que sempre fez com uma certa tirania maternal com prazer e desinibição. Passou a ter dificuldade em engolir. Gulosa, autora da frase que me definiu para sempre a razão do fadado insucesso de qualquer sonho de socialismo, "quem é que não gosta de comer gostoso", ou seja, ninguém quer comer só pela fome, também quer e merece o prazer do sabor e da sofreguidão, entre acessos de tosse por leves aspirações, seus bocados ingeridos passaram a ser tormentos, grandes esforços. Até mesmo sorvetes, que sempre lhe deram grande prazer necessitavam de nossa ajuda, pois nunca comeu nada lentamente. Nem fez nada lentamente na vida. Tinha pressa de viver. Não por prazer de ser assim. Era apressada de berço.
Sempre foi dura. Muito, mas muito mesmo, desconfiada. Não me recordo na infância ter me abraçado ou me beijado o que ela fez muito quando eu já estava adulto. Tinha uma visão de mundo muito realista para mim que era homem. Não me deixava entrar na cozinha. Não era lugar para homem. Na sua visão pragmática de mundo, não havia refresco para quem era homem no mundo. Tinha que ser responsável, trabalhador, resiliente, acima de tudo forte, não confiar em ninguém, "ninguém vai te dar nada de graça", era muito enfática nesse ponto, com todos os filhos e mais exigente comigo, o filho homem. Criava um provedor como meu pai o fora.
Eu queria fazer jornalismo, gostava das letras e das palavras. Foi definitiva: "Vai morrer de fome, emprego é dificil. A vida é dura, você é pobre, é inteligente, tem que aproveitar o dom". Fiz Medicina porque gostava muito de Biologia. Hoje não conseguiria fazer mais nada diferente do que faço. Assim que entrei na Faculdade passei a ensinar química em Alagoinhas. Recebi meu primeiro salário contentíssimo aos 19 anos. Rito de passagem. Numa Segunda Feira depois disso fui pedir a ela dinheiro para o transporte e merenda na Faculdade. Tranquilamente, friamente, enfaticamente, inapelavelmente, assim como uma mamãe passarinho empurra seus filhotes do ninho para que voem e ganhem o mundo com todas suas dificuldades e armadilhas, ela olhou pra mim e disse: “tem mais dinheiro para você não, você já está trabalhando, já tem salário". Agora era eu e o mundo. Cheio de brios não reclamei. Nunca mais me deu um tostão, pelo contrário passei a emprestar quando me pedia raramente. Mas não me lembro de guardar rancor disso. Pelo contrário, sua atitude me fortaleceu extraordinariamente para vida. Assim era minha mãe.
Assim, como disse, numa tarde de Domingo, ela morreu nos meus braços. Digo que foi planejado porque na semana anterior fui na casa dela programar o próximo final de semana que passaria comigo e enquanto a esperava sentado no sofá, ela apareceu propositadamente solta andando sem auxilio e penteando seu próprio cabelo e falando com menos dificuldade, o que me levou a exclamar silenciosamente "minha mãe está curada, Graças a Deus!". Mas não estava. Apanhei-a na Sexta. Ela se despediu de uma forma diferente de minha tia que iria viajar com minhas primas. As duas irmãs que ligaram seu destino numa mesma família durante mais de meio século, uma como Mãe e outra como Tia, vitalina, prestimosa, e dedicada aos filhos de sua irmã, se despediam sem perceber que era a última vez. Talvez minha mãe soubesse. Não sei.
Passou o final de semana cansada, com uma leve dor no peito. Ansiosa por ver meu pai, mas ao mesmo tempo temerosa do futuro: "eu quero viver", como se a nostalgia prenunciasse a morte, ela me disse como se fosse uma súplica ou uma constatação.
O fato é que na noite de Sábado, nos dois sozinhos em casa, sentei ao lado dela na cama onde estava e de repente nos deu vontade de conversar sobre tudo, com uma nostalgia alegre. Rimos. Nos divertimos. Falamos com tristeza também. Revivemos tudo que foi lembrado. E foi muita coisa. Para sua satisfação ressaltei a importância dela na formação de seus filhos. Ela fez de tudo para que todos estudassem, mas nem todos cumpriram o destino que ela traçou para cada um de nós e sonhou. Assim a vida faz com as mães. Malgrado a luta de cada uma delas nem sempre são bem sucedidas. Mas tentam até o fim. No outro dia algum tempo após o almoço, ouvimos um gemido. Nos levantamos de um salto e encontramos ela com o terço na mão e rezando alto. Ela me olhou de uma maneira preocupada que nunca vou esquecer e perguntou: "acordei você meu filho?". Não, não tinha acordado minha mãe, estava lendo, não tem problema nenhum, me chame qualquer coisa, e voltei para o quarto. Alguns minutos depois faleceu. Eu e minha esposa, a nora que ela aprendeu a gostar admirar tanto como uma filha dedicada, com ajuda de vizinhos, descemos o corpo, sentadinha numa cadeira como se estivesse descansando. Morreu com um ar tranquilo que todos comentavam que nem parecia estar morta. Estava dormindo. Se me visse chorando feito uma criança no sepultamento talvez me censurasse: "homem não chora". Fui deliberadamente desobediente. Desculpa Mãe.
- Autor: Vênus (Pseudónimo ( Offline)
- Publicado: 13 de maio de 2024 21:55
- Categoria: Conto
- Visualizações: 5
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