Crianças e vagabundos

O eremita invisível

Como eu invejo as crianças!
Estar livre de responsabilidades
e do estigma de que a dignidade só
é obtida após ter a alma sugada por  
um emprego de bosta, das nove às cinco,
é um privilégio exclusivo da infância

Os pequenos usufruem de uma capacidade
que parece nos abandonar com o passar dos anos:
curtir, sem culpa ou pudor, a total improdutividade
de um dia ocioso
Apreciar a vida pelo o que ela é

Claro, a falta de pão é uma realidade
que, muitas vezes, as força a abrir mão dessa
vantagem, obrigando-as a entender na pele
a razão pela qual os adultos aparentam ser criaturas
desprovidas de fulgor interior

Mas elas acabam nessa por puro instinto de sobrevivência,
para que tenham o que comer ao fim do dia
Diferente delas, fora o alimento, temos uma segunda
necessidade: sermos uteis
Pois é, colocaram em nossas cabeças que o dia bem vivido
é o dia produtivo, onde você fez alguma coisa além de coçar
o saco
E nós mordemos direitinho essa maldita isca
Hoje, quando gasto minhas horas sem ser útil à porra
do mundo, sinto ter cometido o pior dos pecados

Há um segundo grupo que se assemelha às crianças:
os mendigos
Lógico, justamente por isso, também são alvos da minha inveja
Agenda sempre disponível,
não vivem pegando no pesado,
e andam despreocupados com o futuro
O que mais um homem pode querer?

É um caso a se pensar...
Pois criança nunca mais voltarei a ser,
mas uma boa dose de coragem é o que me falta
para começar a vagabundear

  • Autor: O eremita invisível (Offline Offline)
  • Publicado: 17 de junho de 2023 20:21
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 4


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