Assim como você

O eremita invisível

Eu sou uma mentira ambulante
E da mais inofensiva possível
Aquela que adocica as nossas diárias
interações sociais com o seu inerente
cinismo e nos faz trocar sorrisos,
como crianças partilhando da leve doçura
de um pecado tão necessário
É quando te respondo com o falso
"Tô bem e você?" após um igualmente
falso "Tudo bem com você?"
A velha lorota que antecede
o tópico realmente importante
de qualquer conversa

Eu sou uma mentira ambulante
E da mais profissional possível
Aquela imprescindível todas as manhãs,
como uma pílula que anestesia os
sonhos cultivados no meu coração sobre
quem eu gostaria de ser e me força a
atuar no mundo como algo bem menos que
uma sombra de mim mesmo
É quando lanço minha alma artística
na violenta máquina trituradora
do corporativismo enquanto penso
"Meu Deus! Mas como eu amo este trabalho!"

Eu sou uma mentira ambulante
E da mais canalha possível
Aquela em busca de experiências
extraconjugais diferenciadas
no meio tempo delimitado pelo
"até que a morte os separe",
como um marido capaz de quebrar
a promessa de amor eterno sob
o teto espelhado do motel 
mais nojento da cidade,
em nome de uma breve brincadeira
adúltera e fetichista
É quando o fogo que surge
do contato da minha pele
com as provocantes lingeries
já há muito abandonadas pela
minha esposa ascende o tesão
de outros homens casados,
se é que você me entende

Eu sou uma mentira ambulante
E da mais psicótica possível
Aquela determinada a sujar
as mãos de sangue no menor
indício de ameaça a sua hegemonia,
como um neurótico ditador suspeitando
de conspirações tramadas pela própria
família para tirá-lo do poder
É quando a tua desconfiança
acerca da minha índole fabricada
há décadas me obriga a colocar uma
arma contra sua cabeça e te estourar
os miolos, seu filho da puta

Eu sou uma mentira ambulante
E da mais real possível
Aquela que dá base e alimenta-se
das outras há tanto tempo que
torna-se absolutamente insustentável,
em gênero, número e caso
Como um velho e cansado galho,
de uma antiga árvore enraizada
no inferno, que está prestes a cair
e retornar à terra antes do momento
determinado por Deus
É quando o monóxido de carbono
inalado em um quarto fechado 
liberta-me da angústia desesperadora
e insuportável de uma vida apoiada
em mentiras que me renderam nada
além de frutos podres



  • Autor: O eremita invisível (Offline Offline)
  • Publicado: 22 de abril de 2023 00:48
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 13


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