A Noite Mais Escura do Ano

João Fraga

    Ele acendeu um cigarro e exalou fumaça junto a sua compaixão. Eram 19 horas de um sábado invernoso e rotineiro. Era a noite mais escura do ano, por coincidência. Em dias comuns vemos o contorno das árvores em contraste com o céu noturno de forma a nos acolher e lembrar-nos de que ainda há luz, mesmo que nos momentos de escuridão. Mas não haviam contornos, ou luz, ou esperança. Não se via estrelas e o único brilho remanescente durante a escuridão eram as quentes luzes provenientes das lâmpadas nos altos postes e faróis de carros. O bar inteiro havia parado. A música continuou por alguns momentos até que a banda percebesse o ocorrido e zelasse pelo total silêncio que apenas era sobressaído pelo cochicho da multidão e grunhidos agudos de pessoas assustadas.
     O homem fungou e tragou seu cigarro mais uma vez enquanto observava a cena. Algumas pessoas se reuniam em volta do ocorrido e comentavam o caso. Já haviam ligado para a ambulância, mas não havia fogo de esperança ou chama de Prometeus. O que ocorreu estava estabelecido e não seria mudado. Fatídico momento. O homem terminou sua cerveja e puxou a manga do jovem garçom ao lado que estava extasiado e sem reação.
    — Traz mais uma, fazendo o favor - Requisitou o homem deixando de lado toda e qualquer preocupação com os fatos que se davam a menos de 15 metros de sua pessoa — uma bem gelada, ouviu?
     O rapaz, atônito com o pedido, o encarou de queixo semi-aberto. Todos que ali estavam ou tiraram seus olhos, ou fixaram-os no acidente. Mas nenhuma pessoa conseguiu ignorá-lo, nenhuma pessoa desdenhou do ocorrido. O homem mais uma vez exclamou seu desejo enquanto apontava para o bar. 
     O homem possuía feições mórbidas. Em seus olhos não havia brilho e em seu rosto, quaisquer expressões de felicidade. Apenas aquela face de um vivo que já deixou de viver há tempos. Uma boca reta, sem sorriso ou tristeza; olhos cabisbaixos como o olhar de alguém que já viu coisas irreparáveis; as rugas e as olheiras o complementavam, como acessórios indesejados, impostos em um velho e cansado homem. O jovem rapaz entregou-o a cerveja, nenhum sentimento veio quando o homem o agradeceu.
     Acendeu um cigarro com a bituca acessa do anterior e, ainda apático, continuou assistindo à comoção pública que o contornava. No asfalto, jazia um homem. Cerca de 70 anos, roupas formais e cabelos grisalhos. Sua mala estava há vários metros de distância. Ele havia cruzado o semáforo no sinal verde e um carro, que vinha em maior velocidade do que a permitida na via, encontrou-o em meio a avenida. O carro não parou para prestar socorros.
     No chão jazia o que uma fez foi um homem. Agora, massa de carne. Seu corpo foi jogado metros a cima e ao cair, bem, ao cair ele virou o que agora não é. Um homem. Seu crânio rachou-se devido à pancada e seu encéfalo coloriu o asfalto como uma mórbida brincadeira infantil. Suas tripas se romperam no momento da batida e se esparramaram pelo chão. Aquela cor amarelo gordurosa com respingos avermelhados de sangue tingiam o local. Uma poça de seu sangue esvaia para suas costas. Sua expressão facial aterrorizava a todos, mas por algum motivo lembrava a expressão do homem no bar, este que, sentado à mesa, deliciava mais uma gelada cerveja, como pedira.
     A ambulância não tarda (Se é que em tal situação há algo não seria tardar) E conforme a limpeza era realizada e os pedaços eram embalados em sacos pretos, o ruído da população ao redor diminuía e se aquietava. O jovem garçom, esquecendo de seus modos, sentou-se a mesa com o homem. E começou a conversar sobre o acidente:
     — Você viu? Tipo, quando aconteceu?
     O homem apenas assentiu. Mais um gole, mais uma tragada.
     — E o carro nem parou para ajudar, né? Onde que esse mundo vai parar?
     O homem apenas assentiu mais uma vez.
O garoto perde as esperanças de uma conversa com o homem, mas algo o faz continuar. Sedento pela sua curiosidade ele continua alimentando aquela conversa sem vida.
     — Porquê você não teve nenhuma reação? — Pergunta o garçom.
     — Porquê você não volta ao trabalho? — Respondeu o homem apontado para o público retornando às suas mesas.
     O jovem gagueja um pouco e balbucia algo, mas dá-se por terra e diz que o homem tem razão. Pede desculpas pelo incomodo e se retira.
     — Garoto! - Exclamou o homem enquanto colocava seu casaco e tragava seu cigarro - Essa é a noite mais escura do ano... Tome cuidado.
     E com isso, o homem caminhou para longe do bar deixando o gosto amargo da dúvida na cabeça do jovem garçom. Ele remoeu esses pensamentos dias a finco tentando encontrar os motivos daquele melancólico homem. Mas tudo foi em vão, tudo foi por nada. Sua procura foi tão vazia quanto o crânio do acidentado. Mórbido, melancólico e confuso. Não houve respostas e, quiçá, essa foi a resposta dada. Sem motivos.

  • Autor: João Fraga (Offline Offline)
  • Publicado: 27 de julho de 2022 17:53
  • Categoria: Conto
  • Visualizações: 7
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Comentários1

  • João Fraga

    É um dos meus primeiros contos, espero que gostem!



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