O que sou,
Senão a névoa das desilusões
Que paira sobre as eras?
O que sou,
Senão o tempo que serpenteia
Imperceptível aos sentidos dos homens,
Tão fúteis, tão inúteis?
O que sou,
Senão o juiz de Deus?
O que sou,
Senão um Deus sem vidas
Ou corações cheios de uma fé cega e infrutífera
A vomitar adoração?
A chuva de um velho janeiro
Chegou trazendo um ano novo
Vestido de trapos encardidos,
Fantasia de uma luz sem brilho.
Do chão brotam sepulturas
Onde decompõem as esperanças
E eclodem novas dores
Tão conhecidas que são chamadas pelo nome.
A chuva - tão fria! - chegou como o ponteiro do relógio
Em sua volta universal...
Algo que se move mas não sai do lugar;
Que não é outra coisa senão previsibilidade,
E determina os passos de cada infeliz
Que vagueia, servo ou senhor.
A janela contempla a paisagem de seu único quadro
Esvaziado das cores de um destino
Que era como um pássaro prestes a voar.
Sente-se um perfume trazido de bem longe,
Onde as asas dos sonhos não alcançam,
Mas de onde partem mortais pesadelos.
A própria morte é um reles cão
Que treme de frio e sente fome
Numa terra abundante de pão e maldade.
Criaturas das sombras vilipendiaram os desejos,
Enodoaram doces aventuras
De um anseio inocente.
As águas do rio fizeram-se negras...
Seres rastejantes espreitam no caminho.
E nada acabou.
Nada ficou que merecesse um canto ainda que de dor.
O silêncio veio como a noite,
Como uma claridade tão intensa e insuportável!
A chuva chegou em passos tão graciosos
Quanto firmes no propósito de dizimar tudo.
Dizimar tudo em nada
Para a sanha de um Deus
Que vive da morte,
De transformar tudo em cinzas.
Em frágeis caixas de feitio único
Batem corações com a força de incontáveis bombas
Explodindo gigantescos seres feitos de imaginação.
Alguns tão fortes
Que são invencíveis.
Mas é fácil encontrar delicadas camélias
Mortas ao longo da estrada,
Esmagadas pela beleza.
O trovão emudeceu
Cansado de ladrar no deserto.
Quão triste é o escorrer da chuva pelas ruas
Como lágrimas derramadas em vão!
Para onde elas escorrem
Não haverá quem as console...
Para onde vai o rio de águas negras
Não há mar que o espera,
Como não há abraço após longa jornada
Do peregrino maldito.
O chão de casa, o amor da mãe tão pobre
Que murchou seu corpo numa labuta sem valor,
Tantas horas de alegrias infrutíferas,
Tudo foi vencido pelo invencível curso da vida,
Pelo invisível e desgraçado fluido que tudo arrasta,
Como a mais letal das enchentes.
Nada ficou que merecesse um canto ainda que de dor.
E nada acabou.
A não ser tudo que respirava
Uma nesga de esperança;
A não ser o alfinete onde o mundo estava pendurado.
Desabou como a chuva;
Desabou como um punhado de panelas barulhentas
Caindo de uma prateleira...
Os sapos que pulam pelo chão encharcado
São as estrelas que caíram,
Abaladas pela explosão de um peito fantasmagórico
Que vaga eternamente iluminando trevas sem fim.
A chuva chegou com sua elegância,
Seu desdém,
Seus olhos de suplicar amor
E esconder segredos de gente convencida.
Chegou espalhando seus pingos de dor e tristeza,
De revolta e ódio,
De um sentimento que Deus ainda não criou o nome.
Difícil descrever o rosto de quem a tudo aniquila...
Difícil suportar a leveza de um vazio que atordoa.
Impossível contar as horas que nunca terminam,
Cercar o tempo que não passa.
Insuportável dialogar com a imaginação
Que foge escorregando por frestas invisíveis.
Pesadelos visitam noturnamente
O sono de quem quer apenas desaparecer,
Evaporar para todo um sempre
Que o esconda para sempre
De toda verdade, ainda que conhecida em detalhes.
A chuva é incapaz de trazer a mentira...
Expõe cada falso sorriso, cada mesquinho interesse.
Nem mesmo o calor da modorrenta estação
Aplaca a gélida aparição.
A ave saturnal fez seu ninho onde ninguém viu
E teceu novas velhas amarguras
Para presentear o velho novo tempo
Que a chuva trouxe.
Tudo é o mesmo.
Nada mudou, apesar de diferente.
Nada acabou
A não ser o que faz sorrir
E o que faz parar de chorar.
Chorar...
Oh, águas amargas que não movem moinhos!
Nada ficou que merecesse um canto ainda que de dor.
E nada acabou.
- Autor: Doloroso (Pseudónimo ( Offline)
- Publicado: 22 de abril de 2022 13:02
- Categoria: Triste
- Visualizações: 22
Comentários1
Lindo e reflexivo!
Esta chuva metafórica
tras sucessivos acontecimentos
Que parece que veio para mudar
Mas que não muda a essência das coisas
A mudança vem de algo mais profundo
Que acho que não está neste mundo de sombras.
Parabéns Poeta , por trás do nome do pai !!
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