Miha

Tempestades Noturnas.

O peso nunca foi embora. Costuma recorrer a truques sujos como fingir distância ou se esconder debaixo das cobertas, esperando a hora de dormir para atacar e tornar podre cada migalha de falsa esperança que foi moldada durante a abstinência do dia. Se imaginava livre do peso, como uma Coraline inocente que fora morar com a família de olhos de botões. Infelizmente para ele, a pessimista auto-consciência caía com um baque a cada vez que pensava em reaproximar a face dos travesseiros. O que deveria ser sinônimo de paz, tornou-se o pior dos pesadelos, lúcido como um louco que decidiu prescrever a própria libertação dos medicamentos sem qualquer orientação superior. Um louco que, ao sentir-se livre dos remédios, caminhava em direção ao suicídio... Afinal, a doença o corroeu e as únicas coisas que restam são sensações de razão temperadas com traumas e incertezas, prendendo-o em um labirinto na sua própria mente, impossibilitando-o de conhecer o mundo ao seu redor. É sequestrado e estuprado pelos flertes do livre arbítrio, quando evidentemente fora escravizado e humilhado pela política do pão e circo que instalou em sua própria cabeça. Se conforta na culpa, pois não suporta imaginar que não há o que possa ser feito. Descansa ao não suportar mais sua existência, pretendendo desaprender os tortos caminhos que lhe foram oferecidos. Nestes momentos, torna o velho mendigo em abraçada criança e logo em seguida num amado e protegido feto, abraçando seus próprios joelhos e chorando silenciosamente. A chuva cai, agredindo as janelas de seu quarto e agindo como lembrete acerca da segunda-feira que terá de enfrentar após outra noite desperto. Revivendo os sentimentos mais primitivos e irracionais, evolui novamente para a criança que, agora, aceita sua frustração e desiste de brincar de Deus. A chuva é relógio que, a cada batida, presenteia-o com devaneios sãos e desesperançosos, os quais não suportaria perder. Cada gota que escorre faz companhia para as lágrimas que sequer saíram de seus olhos, tornando vazia a agonia e extinguindo a tempestade. Tal tempestade esvai, tornando-se garoa enquanto o corpo procede seus padronizados protocolos de descanso, sem um tornado dentro de si. Infelizmente, não há mais morada ali. A casca, toda noite, se transformava. Se destruía. Se matava. Judiava de todas as moradias dentro de cada célula ali presente, convidando o amor ao exílio. Por que ficaria ali, esfarrapado e mendigo? Por que insistiria em um ciclo de tempestades, nas quais não há lar ou refúgio? Então ele se tranca. Não é capaz de deixar este corpo, mas de construir sua própria fortaleza. Enquanto a garoa se dissipa, o amor dorme. Assim como o velho. E finalmente, juntos, descansam.
  • Autor: Miha (Offline Offline)
  • Publicado: 14 de Novembro de 2021 23:03
  • Categoria: Conto
  • Visualizações: 9
  • Usuário favorito deste poema: Miha.


Para poder comentar e avaliar este poema, deve estar registrado. Registrar aqui ou se você já está registrado, login aqui.