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Querido amigo,
Hoje é dia 16 de maio e a Grande Reclusão continua com toda falta de vapor.
Talvez seja porque o frio chegou ao lado b da linha do trem, o lado onde eu estou isolado.
Mas, independente disso, sei que tenho que me esforçar pra continuar queimando carvão, pois isso vai levar minha locomotiva pra frente.
É verdade: os trilhos enferrujados continuam apontando um único caminho e nos implorando pra nunca desistir. Eles cantam: "Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje. Mas jamais pare."
E tudo isso é a cara da sua voz, que eu apelidei carinhosamente de "o meu combustível para prosseguir na luta".
Afinal, o show não pode parar. Há ouvidos que dependem da nossa música, assim como os diabéticos dependem de insulina.
Mas estar longe é tão empolgante quanto uma sessão de tortura, serinho. Especialmente para mim que passei mais da metade da minha vida recluso. Só de pensar na ideia de a solidão se estender, eu já fico me contorcendo que nem um caramujo quando a gente joga sal.
Acho que até os desessete anos eu vivia num porão e só conhecia vinte e três palavras, só pra você ter uma noção. Mas assim que declarei a solidão uma inimiga mortal, tive o prazer de encontrar você. E o teu vocabulário de repente me apresentou a única parte do mundo que valia a pena conhecer.
Ah, se não fosse por você, eu estaria empanado, frito e servido no jantar das sete da noite. É por você que continuo aguentando. Porque prometi te fortalecer. Então, mesmo que eu caia sete vezes, levantarei oito pra que continuemos cantando a canção do não desista juntos.
Mas, cá entre nós, seu poder sobre meu humor é surreal. Ontem, bastou você ligar e eu cheguei a abraçar o telefone. Aliás, nem pode fazer isso, né? Se o coronavírus me ver moscando assim, ele me pega. Mas é provável que ele também vá entender que você me imuniza com a sua voz. E eu preciso muito disso, porque a vida não está sendo fácil.
Sabe, está bem claro o fato de que, por um momento, eu estive no escuro. Tudo isso porque o caos agora se anuncia de fora, muito diferente das vezes em que eu desmoronei por dentro e você reforçou minhas estruturas.
Ainda assim, uma aura de esperança me cerca e um exército de amigos continua marchando ao meu redor. Pronto: é a intervenção que eu queria. Isso consola e anima o coração.
Então, fica combinado o nosso encontro quando tudo isso acabar. Vamos catar os cacos do que restou e faremos uma nova história, pois sei que seremos bem diferentes depois dessa fase.
Por mim, pode deixar, vou continuar rastejando, pois não vejo a hora de reconstruirmos a nós mesmos com os materiais que este mundo deteriorou. Não vejo a hora de refazermos nossos laços rasgados, os prédios desmoronados, as terras ensanguentadas e as vidas desgastadas. Não vejo a hora do lado a e o lado b se encontrarem no final feliz da história.
Com carinho,
Um amigo
- Autor: Rafael Marinho ( Offline)
- Publicado: 16 de maio de 2020 12:25
- Categoria: Amizade
- Visualizações: 31
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