Um Encontro com a Felicidade

Marçal de Oliveira Huoya

Foi em São Paulo que ele conheceu a Felicidade. Tudo bem ainda era jovem e francamente ele nem sabia que ela existia de verdade. Morava nesta época no 11o andar de um Edifício na Rua Frei Caneca a dois quarteirões onde ela toca na Paulista, em frente ou quase em frente a uma igrejinha minúscula responsável por insônias memoráveis. Forasteiro que era, solitário e melancólico, pela primeira vez afastado da família, a cada hora em que a noite avançava para a madrugada o sino badalava uma vez, iniciando e reiniciando uma corrida aflita de seus carneirinhos até a próxima badalada em busca da inconsciência proveitosa e necessária que deveria acontecer bem antes que a primeira luz o desesperasse pela noite perdida e pelo dia que lhe seria imposto. Deitado, numa ginástica previsível alternava os lados para atrair o sono, um conforto temporário e animador que logo se mostrava inútil, induzindo a nova e ineficaz mudança de posição. Fechava os olhos e aguardava ansiosamente a transição entre os pensamentos organizados até quando eles se desorganizam e perdendo o controle ganham vida própria em absurdos com ares de sonho, uma semiconsciência, prenunciando a entrada num mundo desconhecido, do qual pela manhã, satisfeito, lembraria muito pouco. De forma que ele sabia que o sono estava chegando em vez da tortura da noite marcada pela averbação horária de seu insucesso. E assim corriam os dias e se passavam as desafortunadas noites.

Foi quando foi apresentado à Felicidade, de forma meio casual se lhe acode a memória, amigos, uma amiga mais animada e até de certa forma com gostos requintados e dominadores, um vamos sair esta noite, para aonde, a gente vê, olha vamos comer uma paella, vocês vão gostar, ah você não gosta, mas você vai gostar, prefere pizza, hum, que coisa, tudo bem, tem essa pizzaria aí do lado, você vai, quem preferir vai com ele, hum preferir pizza a paella, só podia ser baiano, hehe, mas você é baiana também, eu baiana, nada disso, morei um tempo em Brasília, sou candanga, sai pra lá esse negócio de ser baiano pega, hehe...

De repente ele estava só e infeliz. Não que essa sensação fosse de toda ruim, talvez ele até mesmo tivesse inventado e alimentado esta impressão e quisesse muito acreditar nela, formalidades de um exilado, talvez. Estavam ali ao lado todos perfeitamente entrosados e entronizados e ele completamente só. Foi quando a Felicidade sentou na sua frente. Na verdade, ele não tinha notado, mas a Felicidade estivera lá o tempo todo no meio do grupo, meio tímida, furtiva, escondida entre tantos palpites sorrisos e desacordos. Mas, como ela mesmo lhe falaria mais tarde, Felicidade se apenou dele e resolveu lhe seguir. Felicidade e compaixão, naquele momento ele não sabia se era uma mistura com muito porvir, mas enfim, foi a Felicidade que lhe escolheu.

. Conversou a noite toda com a Felicidade, ela lhe contou coisas interessantes de como fora infeliz nas suas escolhas, ele nem sabia que a Felicidade escolhia, sempre soubera que o livre arbítrio era dele ou das pessoas, de modo que ao final da noite ele já tinha beijado a Felicidade. Um beijo imperioso, claro, ora ele tinha que beijá-la, o que ela pensaria dele, tudo bem foi um beijo ritual, inevitável naquele mundéu de cidade, que se dissesse de passagem possuía regras bem claras de comportamento social, afinal, ele já tinha conversado o suficiente e pareceria estranho que alguém conversasse tanto, durante uma noite inteira e nada mais. Ele acreditou que Felicidade também estava só e queria muito ser beijada. Não se pode deixar a Felicidade, ali, na mão, se oferecendo e ele cheio de dedos e luvas de pelica. Pois beijou e pronto. Estava namorando a Felicidade.

A Felicidade não era bonita, mas também não era feia. Sabe-se lá, ele nunca tinha encontrado a Felicidade antes, era a sua primeira experiência com ela. Não era alta nem era baixa, mas era mulher. Sim, se vocês não sabem a Felicidade era uma mulher, seu comportamento era inteiramente feminino, imprevisível e sedutor, não obstante como se lhe apresentasse, ele a veria sempre atraente. Estranho descobrir isto, mas ele sempre achou que seria assim. Felicidade não tinha nascido em São Paulo. Tinha vindo bem de lá do interior do Nordeste. Pasmem. Definitivamente um lugar extravagante para o berço da Felicidade. Um lugar seco, esturricado, onde brotavam flores de onde vida não se esperava. Aí ele deu valor à Felicidade. Seu rosto não escondia a origem. Talvez a Felicidade não venha de forma igual para todos, mas a dele tinha sotaque e feições bem nordestinas.

Os dias passaram e ele pensou que a Felicidade o tinha esquecido, foi quando ele ouviu a campainha da porta tocar. Abriu a porta e pronto, o que viu, a Felicidade em carne e osso. Pintada, escovada, arrumada, pois quando ela quer a Felicidade sabe se arrumar para quem ela deseja. Imediatamente ele fechou a porta para a surpresa dela. Com a porta fechada ele pediu que ela batesse em vez de tocar a campainha. A princípio ela não entendeu nada, absolutamente nada, mas como ele repetisse o pedido, ela então deu três batidinhas com o nó dos dedos. Ele abriu a porta e ela entrou com um ar desconfiado, afinal por que ele tinha fechado a porta e aberto novamente somente depois que ela bateu na porta com as mãos? Ele franziu o cenho com uma seriedade imprópria e reclamou, ora, isto não se faz, ele havia esperado a vida toda que a Felicidade batesse na sua porta e enfim quando ela chega ela vem com estas modernidades tecnológicas de utilizar uma mera sirene, que falta de sensibilidade! Ela sorriu e deve ter pensado que ele não era lá muito certo. Tinham combinado passar o final de semana prolongado em Curitiba, isto é, primeiro visitar a caverna do Diabo (convite incomum para a Felicidade) e depois seguirem para Curitiba.

Pois bem seguiram ele e a Felicidade pelos meandros da Regis Bittencourt (um trajeto temerário onde muitas vezes a Felicidade teve um fim) assim como uma amiga com um maravilhoso sotaque mineiro. Deus lhe perdoasse, mas aquilo era uma ameaça a Felicidade. Mas enfim ele se resignou com a Felicidade que já estava ali com ele, e quem já está com a Felicidade nas mãos não pode abrir mão dela, por maiores que sejam as tentações.

Mais inda não tinha sido desta vez que conheceria a Felicidade profundamente. Voltaram a São Paulo. Frio, muito frio. Finalmente ele foi dormir com a Felicidade. Quem nunca sonhou com isto? Dormir agarradinho e de conchinha com a Felicidade? Mas estava frio e a Felicidade não tinha mexido com ele o suficiente. A Felicidade, no entanto, não desistiu dele. Ato contínuo, pôs as mãos à obra, a Felicidade com um olhar severo e esquecido, se fixava no preparo minucioso de sua fórmula. Do quarto com a porta aberta, ele podia perceber que a cozinha se tornara uma atmosfera pesada e sombria, sentiu que a caçarola fervia, acreditou ver porções de vinho tinto, açúcar, canela, gengibre e um copo de aguardente sendo atirados pela Felicidade dentro daquele recipiente borbulhante como se estivesse em transe. De vez em quando a Felicidade provava da sua beberagem e sorria de forma assustadora muitas vezes quase gargalhando. Era para servir quente e quente foi servido. Ele não sabe se foi uma ilusão, a ideia da magia sempre lhe deixou muito sugestionável, mas patas de aranha, asas de morcego e olhos de coruja muito bem poderiam ter feito parte daquela formula, dissimuladas e dissolvidas dentro daquele caldeirão, mas ele nunca saberia. Aliás, preferia nem saber. Mas de longe ele acompanhava curioso e visivelmente apreensivo as atribulações daquela pitonisa totalmente concentrada no preparo da sua poção. A poção da Felicidade.

Exultante, enfim ela retornou com um copo cheio daquela beberagem. E aproximando-se da boca da sua vítima com um rosto sinistro não lhe deu opção. Beba tudo, ordenou. Abalado, estagnado e sem esboçar reação, para não desagradar a Felicidade, naquele momento totalmente fora de si, inteiramente interessada no resultado de seu elixir, ele bebeu tudo. Alguns minutos de espera...e os ânimos começaram a se elevar, ele percebeu um sorriso de satisfação entreaberto nos lábios da Felicidade. Não foi à toa que a vida surgiu em meio à fervura da lava incandescente dos vulcões e sob intensas tempestades, raios, trovões e chuvas. Naquela noite ele aprendeu tudo que se pode aprender sobre o Amor com a Felicidade. A Felicidade se transformou assustadoramente em Êxtase. Descobriu que a Felicidade usava inúmeros nomes para o Amor, nem sempre possíveis de se publicar. Ouviu coisas sagradas, coisas profanas. Línguas e dialetos já desaparecidos no tempo. É surpreendente quando a Felicidade perde contato com a realidade!

Bem, o tempo passou, e a Felicidade não largava do seu pé. Sinceramente, ninguém aguenta a Felicidade o tempo todo. Ele acabou. Acabaram. Ela acabou com ele. Tudo isto junto e misturado. Mas alguns dias depois a Felicidade voltou. Continuava não desistindo dele. Seria ele a última chance para a Felicidade? Entrou no apartamento, mas agora utilizando o Interfone. Subiu. Ele a recebeu de porta aberta, porém um pouco entediado. Ela não perdeu tempo. Foi direto ao assunto. A Felicidade contou que estava grávida. Que apreensão! Constrangimento! Ele todo ouvidos. Que nome ele daria ao filho com a Felicidade? Fortuna? Muitas horas de conversa depois a Felicidade em prantos (que paradoxo!), confessou que não era verdade, só queria ver a sua reação. Teria feito outra má escolha? Que bom disse ele. Não se acostumaria a casar com a Felicidade para sempre ou criar seu filho. Era tarde, madrugada, a Felicidade não queria voltar para casa aquela hora. Era perigoso, você sabe…Tudo bem, como ele só tinha uma cama de casal, convidou a Felicidade para dormir ao seu lado. A esta altura ele já estava desconfiado da Felicidade (alguém por acaso pode se sentir totalmente seguro com ela?). Dormiram. Felicidade acordou protestando pela manhã muito cedo. Era a primeira vez que isto tinha acontecido. Dormir e só, e mais nada? Ele retrucou um pouco friamente, sim, há uma primeira vez para tudo. Ele estava sem paciência para a Felicidade. Entendam. A porta se abriu e a Felicidade se foi. Ele ainda tocou suave e carinhosamente em seus cabelos. Deixou que a Felicidade escapasse silenciosamente por entre seus dedos. Parece que a Felicidade chorou, não ficou certo. Ele não viu com certeza. Seria estranho ver a Felicidade chorar.

Era cedo e frio, ainda embriagado pelo sono, voltou e dormiu. Quando acordou o sol estava alto e feroz, o instigando a se levantar. Tinha dormido bem, mas estava exausto, levantou-se e olhou pela janela e o movimento lhe trouxe uma leve sensação de culpa por acordar tão tarde. Olhou ao redor com súbito interesse em busca de vestígios da Felicidade, mas o tiquetaquear do relógio chamou sua atenção e logo percebeu que estava atrasado, tomou banho, se vestiu e saiu. Se misturou na multidão extremamente só e estrangeiro e desapareceu em meio àquela torrente infindável de gente sem mais lembrar da Felicidade.

 

  • Autor: Vênus (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 13 de agosto de 2021 14:26
  • Categoria: Conto
  • Visualizações: 7


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