Suco biliar.

Victor Severo

Sou suspeito para falar, mesmo assim vou dizer, nesses tempos trevosos, fúnebres, confusos e lamacentos, eu preciso, é imperioso para minha alma atormentada vomitar de suas entranhas o ódio que eu sinto por você. Mas esse ódio (bendito seja) não é um ódio qualquer tipo aquele ódio de torcedor que vê seu time roubado por um árbitro canalha. Esse ódio (maldito seja) é um ódio de quem tem fome, sede, anda sujo, suado, fedido, com dor de dente, miseravelmente despejado de sua própria identidade, sem ninguém, sem futuro, sem esperança.

Mas afinal que é você? Que culpa tem você, a não ser a culpa de ser diferente de mim, de estar em uma posição um pouco mais confortável, de não pensar, de não se importar comigo, de não querer me ajudar (talvez não possa) ou de não querer me entender (talvez nem deva), ora bolas, somos de espécies diferente? Sou por acaso uma aberração “freak”, ou um ser de outro planeta? Para você que sou eu afinal, o que pensas tu a meu respeito, como tu me enxergas? Bem, em breve irei saber...

E nesse caminhar trôpego, sem destino de um maltrapilho letárgico e ao mesmo tempo célere, alucinado e encharcado pelo álcool barato e nicotina aditivada, nessa procissão de confusão, nesse cortejo que não sai do lugar, me encontro com meus pares que não consigo à princípio saber quem são, não consigo identificar nem mesmo pelas suas mortalhas, pelo seu fedor, grilhões tão parecidos com os meus.

Eu não sei mais o que é ter pressa, juro, não sei, não me interessa, não quero saber, correr para quê? No mais, o pouco que restou, e que me satisfaz, é observar aqui parado, sozinho, calado, a nuvem de poeira da estrada se dissipar lentamente, abandonada à própria sorte, sem ligar para aqueles, que apressados, correram para a abraçar a morte.

Espera, agora eu sei quem é você, quem na verdade você é, na sua vida de luxo, abraçado à ilusão que o conforto alimenta, na opulência transitória que a vaidade ostenta, agarrado nos tentáculos do que chama de fé, escondido atrás das pilastras do seu templo alvo e asséptico, é você que me odeia, tanto quanto eu lhe odeio, e nós sabemos o porquê desse ódio.

Eu te odeio pois você me roubou as oportunidades, você me odeia como garantia de preservar as tuas (que foram roubadas de mim), o meu ódio é santo, o teu é profano. Teu berço de ouro preservado em ancestralíssima herança de sangue e opressão foi forjado pelo suor e carniça das covas rasas daqueles que me antecederam na escravidão, daqueles que serviram aos teus em secular exploração.

  • Autor: Victor Severo (Offline Offline)
  • Publicado: 15 de abril de 2021 12:10
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 15


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