Doloroso

TESTAMENTO (A ÁRVORE E O PÔR DO SOL) canto III

I'm eating words too hard to say
(Jean-Louis Milford/John Weysley/Paul Ives)

Por que tantas estrelas num céu inútil e desabitado?
Tanta energia desperdiçada
Em demonstrar a vastidão do meu vazio,
A pequenez de minha importância.
Eu rastejo de fraqueza no mundo inglório...
Tivesse eu uma ínfima parte de energia
De uma anã vermelha,
Eu construiria toda uma dimensão;
Todo o meu reino e soberania,
Com um único astro a orbitá-lo.
Por que tanto brilho estéril num céu tão negro?
Por que tanta escuridão na desolada casa de Deus?
Meus olhos afundados nas órbitas
Se perdem ainda mais no sufocante breu.
Qual deus perverso teria me dado tanta treva;
Assombrações de cabelos enegrecidos
Como a noite mais cruel;
Dissolvido tantos sonhos em negra perdição?
A luz que vejo é o bafo de fogo da fera
Que me persegue em meus angustiados anseios.
Por que tantos raios e trovões?
Gritam tímpanos invisíveis enlouquecendo-me, desorientando-me
Em meio a uma profusão de clarões ensandecidos.
Os relâmpagos empalidecem ainda mais o meu espectro,
Conferindo um tom azulado de defunto
Que vaga assustado.
Por que descargas incessantes carbonizam os restos de um coração que agoniza?
Por que tanta chuva?
Dilúvio de desgraças e desesperanças
Desabando impiedosamente,
Trazendo a lama que soterra para sempre
A última centelha da vida mais débil.
Exagero de água lavando das ruas os meus desejos;
Levando embora a salvação;
Inundando de lágrimas um rosto encarquilhado
De sentir o tempo em incontáveis e monumentais derrotas.
Por que tanto tempo?
Duração tão longa de castigo sem crime!
Por que tanto tempo?
Tantas horas a enxugar um pranto doído;
Tantas horas tentando acalmar um coração morto, parado,
Mas que insiste em gritar!
Por que tanto tempo
Vendo o tempo passar,
Dias nascerem, tardes morrerem,
Noites me trazerem agonia?
Por que tanta dor num peito sem vida?
Por que sentir tanto
Se nada há para aliviar,
Se não há ninguém para redimir?
Existir e pensar são dores sem remédio...
Por que tudo isso torturando um espírito em farrapos
Que não encontra portas para bater;
Que não tem mais mãos para bater,
Dissipadas pela lepra de nome proibido de dizer,
Que contaminou só a mim?
Tanto dissabor estampado em espasmos de animal ferido de morte.
Por que tantas visões de um céu azul sem nuvens?
Por que tanto ver passeios e felicidade,
Se tudo isso é a morte
Ou o desejo de morte que não vem?
Eu me tornei o único ser que enxerga a dor.
Por que ver o começo e o fim de tudo,
Sendo apenas o pobre espectador
De um espetáculo de maldade e miséria?
Por que olhar neste espelho
E ver que a imagem refletida não é o jazigo do meu derradeiro descanso,
Mas o mundo dos que me venceram e regozijam?
Por que tantas palavras?
Poucas bastariam que me dessem o triunfo.
Poucas eram necessárias para me dar descanso;
Para me dar o abraço da acolhida.
Tantas são para celebrar minha desventura
E me vestir com o traje da agonia.
E esse infinito de palavras
Se converte na fina e sufocante poeira
Na qual desapareço para o mundo...
Por que tanta morte
Para quem sequer viveu?
Tantos por ques
E nenhum porque...

  • Autor: Doloroso (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 11 de Março de 2021 19:18
  • Comentário do autor sobre o poema: Este texto é a terceira parte do oitavo dos oito textos que compõem o projeto A JANELA (TRISTE E ENIGMÁTICO).
  • Categoria: Triste
  • Visualizações: 4


Para poder comentar e avaliar este poema, deve estar registrado. Registrar aqui ou se você já está registrado, login aqui.