A Pena

Doloroso

O tempo é cego, é mudo
É totalmente surdo
(Marcelo Nova - "Inverno Impiedoso" )

Houve um tempo em que não havia
Vento capaz de lhe levar
Nem o olho do ciclone
Nem os grandes lábios do mar
(...)
Mas não há luz suficiente
Em toda essa escuridão
Que possa varrer a sua sombra
Dos cantos do meu coração
(Marcelo Nova-"Angel")

Hoje procuro em seu silêncio uma rachadura
Por onde possa lhe puxar, encontrar a cura
(Marcelo Nova-"O Nome do Jogo" )

Ainda que eu não caminhasse sobre as águas,
Eu me sentia Senhor delas,
E elas repousavam nas minhas mãos
Embaladas em sono de criança.
Ainda que eu não conseguisse respirar,
Sufocado por uma presença incansável em minha mente,
Todo ar do planeta cabia em mim.
Ainda que eu não te possuísse,
Eu te esperava minha...
Ainda que eu vagasse sem direção
Por caminhos que sabia não levar a lugar nenhum,
Eu te sentia cada dia mais perto.
Estavas em todo canto:
Na tola felicidade,
Na esperança estéril;
Naquela moribunda atmosfera dos entardeceres de sábado,
Num sonho que nunca sonhei...
Estavas em meu destino,
Ainda que eu nunca chegasse.
Teu corpo era meu norte;
Teus olhos, meus passos...
Estavas em tudo
E eu não era nada...
Agora sou tudo o que representa o nada,
Porque tudo deixaste para trás...
O ouro que cintilava na janela de teu quarto
Como um sol só teu
Que iluminava e aquecia o mundo todo,
Trocaste pela treva que cobre a humanidade.
Não quiseste mais a riqueza em tua vida,
E eu me vi na miséria de tua
ausência...
A luz da tarde se despedindo é o teu gesto de adeus.
Os últimos instantes de sol são os derradeiros suspiros
De uma vida que nunca nasceu.
A noite negra emprestou a cor dos teus cabelos,
Escondeu-te para sempre
Das minhas maldades...
Deixou-me a sós com elas...
O ar gelado rasga minha carne
Atravessando meus músculos e alma
Em infindáveis lamentos de agonia.
E o calor do teu leito em noites de desgraça enluarada.
A lua... Ah, a lua!
Solitário astro em companhia das estrelas
Num painel de sonhos indizíveis,
Cósmicos desejos guardados em segredos de caixinha de música e joias...
A lua me vê vagar sozinho pela terra
Sem estrelas a acompanhar-me.
Tu as levaste contigo para enfeitar teu sorriso, teu olhar;
Para brilhar em tuas noites em que a tristeza é ausente;
Para iluminar teus caminhos
E cada cantinho que teu perfume faz agitar um coração.
Levaste as estrelas, todas,
Num punhado em uma única mão,
Sorrindo, espalhando o brilho de teus dentes em pérola,
Afastando de si para longe e sempre o mundo dos maltrapilhos e leprosos,
Restando apenas eu:
Quasímodo sem catedral, sem sinos
E igualmente sem Esmeralda...
Levaste tudo em bagagens invisíveis;
Saíste quando todos morriam ou já estavam mortos.
Eu mesmo não ouvi meus gritos de desespero
Quando me matavas carregando a última caixa,
Deixando para trás a criança de tua mãe
E destroços que pulsam desolados.
Estes dias que agora nascem,
Um após outro,
Com horas perdidas, manhãs enfadonhas,
Tardes modorrentas, noites melancólicas,
Não são os mesmos de outrora,
Aqueles nos quais eu acordava para sobreviver
E um bafejo de brisa do teu ser
Alçava-me em vôos de folha morta.
Puseste outros dias no lugar...
Carregaste contigo os verdadeiros dias
Deixando falsos panos de fundo,
Telas pálidas, empoeiradas,
Dispostas numa velha parede de uma ruína qualquer.
Ruína que sou do que foi uma vez uma vida,
Do que foi uma vez um mundo.
Algo abandonado que alguém não quis levar consigo
Por não ver valor...
Nesta esfera espacial errante tudo é abismal.
Tudo é uma queda sem fim num vazio infinito.
Toda voz sai muda da garganta;
Todo semblante resplandece a face de uma agonia dolorosa e interminável;
Todo ardor no peito é um sofrimento
Por ver e sentir a inesgotável amargura que existe neste mundo.
Nas cinzas do que uma vez foi um vale fértil,
Outrora um campo verde e belo,
Agora um despenhadeiro onde a vida não existe sem a morte,
Eu surjo diariamente como o sol
Em minha prisão inerente,
Inseparável de mim
Como o desejo e o sofrimento.
Ninguém me vê arrastando minhas correntes;
Ninguém repara nos meus cabelos e barba que crescem, pálidos,
Ao longo de ligeiros anos que parei de contar;
Apenas eu percebo na finitude refletida na fria penumbra outonal
A luz da vida que brilha
Celebrando tua entrada no salão dos que conhecem a felicidade,
No baile que brinda a glória dos escolhidos do amor,
Sobre o ladrilho de diamantes,
Sob o qual repousam os restos,
O suor, o sangue e as lágrimas
Dos que foram massacrados
Por teu contentamento sem fim.

  • Autor: Doloroso (Pseudónimo (Offline Offline)
  • Publicado: 7 de março de 2021 08:55
  • Categoria: Não classificado
  • Visualizações: 14
Comentários +

Comentários1

  • Ernane Bernardo

    Lindo poema poeta filho de Samael, intenso e profundo, aplausos. Ótima semana pra ti, abraços.

    • Doloroso

      Obrigado pelas carinhosas palavras, Ernane. Tenho uma ótima semana, também.



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